Martha Abreu: “Quantos amigos negros você tem?”

Em maio de 2022 o Brasil completou 135 anos de abolição da escravidão. Mas em que medida nossas cidades e nosso imaginário ainda ecoam o legado de um tempo em que seres humanos eram entendidos como propriedade de outro?


Martha Abreu é professora titular do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense e pesquisa a resistência dos negros e negras escravizados e de seus descendentes. Ela multiplica a história e mostra que o nosso passado, além de diverso, é ainda muito presente.


Com gentileza e um olhar atento aos prolongamentos, ela nos guia por nomes de personalidades e jornais que escreveram a história da resistência negra brasileira no período escravagista e no pós-abolição. Martha também conta como os traços do racismo e a luta em livrar-se deles integram sua própria caminhada – e discretamente acaba legando perguntas para cada um de nós. Perguntas que exigem a mesma coragem de Martha para serem respondidas.

Por Clarissa Henning

Instituto Racionalidades: Como a senhora analisa o conceito de cultura? E em que medida as lutas nesse campo expressam o atual cenário político do Brasil?

Martha Abreu: As culturas estão sempre se misturando na medida em que estamos em contato com outras pessoas, outros povos, outros grupos, outras religiosidades, outras danças, outras sonoridades. Não dá para definir o que seria uma “cultura brasileira” porque são construções políticas. Então, se você pensa em cultura negra, você está pensando em uma cultura que tem uma proposta política de afirmação de uma identidade negra ou de afirmação de determinados valores de combate ao racismo, de uma identidade em oposição a uma cultura que não seja negra. A gente não usa a expressão “cultura branca”: é cultura europeia – mas mesmo essa não existe, já que ingleses, franceses, holandeses e portugueses são diferentes entre si. Ao atribuir uma adjetivação ou uma regionalização, você está generalizando. Efetivamente não existe uma cultura brasileira porque ela não vai expressar a soma de todo o Brasil. Isso faz com que a gente saia do campo cultural e passe a um campo de delimitação política-identitária – que é o caso da cultura negra. O que é cultura em geral? Cultura é qualquer forma de expressão que demonstre a genialidade da humanidade, seja através de linguagens, músicas, artes, espiritualidades, tecnologias. Então cultura pode ser muitas coisas, mas eu gosto de definir cultura para além de uma materialidade: cultura é também aqueles significados que a gente atribui a determinadas práticas. São os sentidos que você pode dar a uma determinada festa como o carnaval – que seria a expressão da cultura brasileira. Ora, mas são muitos carnavais. Carnavais do norte, do sul, pretos, brancos, de elite, das ruas – cabe uma multiplicidade de significados no carnaval. Quem está dando esses significados? Quem diz que o carnaval é isso e não aquilo? Então a cultura são expressões e significados atribuídos socialmente e politicamente, e também é um campo de conflitos. Ele vai ser vivido, definido, descrito, vai se tornar política pública e vai fazer parte de diversas estratégias de luta. Uma determinada secretaria de cultura vai desenvolver um projeto para valorizar a música erudita e daqui a pouco aparece outro grupo que quer a valorização das escolas de samba. A cultura será sempre um lugar de indefinições, de disputas e de afirmações. Cultura negra e cultura afro-brasileira são expressões que existem desde o século XIX, mas vão assumindo significados diferentes ao longo da história. Hoje são significados positivos, mas já foram o contrário. Os primeiros folcloristas e os policiais achavam que aquilo era barbárie, e alguns folcloristas do início do século XX apostavam que iria acabar, que essa memória da África seria esquecida e que nós teríamos uma cultura brasileira, mestiça, onde todos os brasileiros se encontrariam. Mas as previsões do desaparecimento da herança africana fracassaram. As memórias da África estão sempre sendo reconstruídas, então a ideia de uma mestiçagem equivalente a uma democracia racial não deu certo. A partir da década de 1970, os movimentos negros começam a questionar a democracia racial de uma forma muito mais incisiva – não que antes não se questionasse, mas isso fica mais visível. A cultura afro-brasileira passa a ser fortemente afirmada na luta contra o racismo. Até então, as estratégias de luta não focavam tanto no campo cultural ou na cultura afro-brasileira, mas na busca por direitos equivalentes entre brancos e negros – embora os clubes de negros ou associações carnavalescas sempre tenham lutado pelo direito de existir. A luta pela afirmação da cultura afro-brasileira vai se expressar na Constituição de 1988, que garante direitos culturais à diversidade e reconhece a existência de um patrimônio afro-brasileiro. Isso é muito importante porque é o reconhecimento da herança africana, cada vez mais viva no Brasil. Já a cultura negra seria a ideia de que existe uma negritude que se afirma como uma identidade negra: o racismo é combatido pela afirmação da beleza e talento das expressões negras feitas por pessoas negras descendentes de escravizados – e não só uma herança da África. São dois conceitos que se complementam. A lei 10.639 de 2003 trouxe a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas e foi mobilizada pelos movimentos negros. Ela é um desenvolvimento da Constituição de 88 e usa mais o conceito de cultura afro-brasileira do que cultura negra como instrumento fundamental de combate ao racismo. Os professores têm que trabalhar com a história da população negra, muito mal contada nos livros didáticos e nos cursos de história, e precisam incluir o direito a uma cultura que traz uma evidente memória da África e da escravidão no Brasil. Como isso vai combater o racismo? Primeiro se afirma o direito à diversidade – o Brasil não é mestiço, mas diverso. Há uma diferença aí, porque a mestiçagem caminha para o sentido de diluir as diferenças e hoje a gente afirma a diversidade. O samba do Estado Novo era muito embranquecido e a ideia de que todo mundo se encontrava no samba nunca correspondeu à realidade. A segunda perspectiva importante é valorizar as expressões que foram tão condenadas, combatidas, perseguidas ao longo da história do Brasil. Elas resistiram e estão aí até hoje, e representam o processo civilizatório africano. Havia um processo de desqualificação dessas expressões e das pessoas que faziam essas expressões: uma coisa era o samba que tocava no Teatro Municipal, e outra era o que tocava na comunidade. O terceiro ponto no combate ao racismo é o direito a celebrar uma memória da África que representa a luta dos escravizados que conseguiram transmitir valores africanos para os seus descendentes. São pessoas negras que detém esses saberes e precisam ser valorizadas. O decreto 3.551 de 2000 – portanto anterior à lei 10.639 – determina a existência de patrimônios culturais e imateriais do Brasil. Então nós temos uma série de expressões que recebem o nome de patrimônio imaterial ou intangível, como o samba de roda, os congados, os jongos, o maracatu. Não que elas não possuam um grau de concretude, mas o que se reconhece são as formas de fazer, celebrar e se organizar. É um reconhecimento incrível dessas expressões negras que desde o século XIX lutam para existir. Elas se organizaram das mais variadas formas para lutar contra o preconceito e contra a perseguição. Claro que a visibilidade dessas estratégias hoje não quer dizer que o preconceito e o racismo foram descontinuados. Apesar de todo o apoio político e legal, ainda temos uma série de exemplos, principalmente a intolerância religiosa. Apesar de diversos terreiros terem títulos de patrimônio, ainda sofrem uma enorme perseguição. Por mais que pessoas brancas também façam parte deles, terreiros são expressões da cultura afro e da cultura negra.

“Você começa a descobrir uma série de estratégias que mostram o quanto os escravizados lutavam para melhorar a vida – eram como nós: a gente não fica fazendo fuga e revolução todo dia. Os nossos movimentos são pequenos, mas no sentido de transformar a nossa própria existência.”

IR: Quando aconteceu e qual é o impacto do deslocamento do escravo-coisa ao escravo-sujeito nas pesquisas sobre a escravidão?

M.A.: Há uma longa história dos estudos da escravidão. Do século XX até a década de 1980 os estudos não valorizavam o agenciamento do escravizados na luta pela liberdade. Hoje a gente usa a palavra escravizado e não mais escravo. Escravo dá a ideia de que uma condição natural, ao passo que escravizado aponta para uma ação – alguém o escravizou. Então até a década de 80 os historiadores usavam a expressão escravo, dando a ideia de que era uma coisa, uma mercadoria, e que ele não tinha muita possibilidade de agir. Dominado pela violência e pela falta de acesso a qualquer tipo de direito, o escravo não teria influenciado na transformação de sua própria história – a não ser na fuga, nos quilombos. Essa historiografia que trabalhou com o escravo-coisa admitia que as únicas formas de resistência do escravo eram fugir ou se matar. Os suicídios não eram poucos. A partir de 80, em função de uma série de mudanças na própria historiografia e dos movimentos dos operários, começa a se entender que os dominados resistem não só fazendo revolta ou revolução, mas têm outros tipos de agenciamento. Aí a historiografia começa a reconhecer e a estudar o quanto os escravizados lutavam pela alforria, pela possibilidade de ter uma família ou de acesso a uma roça. Ou seja, eles nunca se tornaram coisas, pelo contrário: nunca deixaram de ser sujeitos. Foram transformando suas condições de vida. Em geral, havia um esforço enorme para comprarem a alforria da mãe de alguém, porque livre ela buscaria dinheiro para conseguir a alforria de mais pessoas e ao menos não teria mais filhos na escravidão. Então você começa a descobrir uma série de estratégias que mostram o quanto eles lutavam para melhorar a vida – eram como nós: a gente não fica fazendo fuga e revolução todo dia. Os nossos movimentos são pequenos, mas no sentido de transformar a nossa própria existência. E no campo da cultura eles brigaram muito para conseguirem fazer os seus batuques. Charles Ribeyrolles foi um viajante que esteve no Rio de Janeiro na metade de 1800. Ele foi visitar uma fazenda e não conseguiu dormir porque o batuque rolou a noite toda. No outro dia ele perguntou para o fazendeiro: “Como o senhor aguenta esse barulho? Você consegue dormir?”. E o fazendeiro respondeu que sim e explicou que, enquanto os escravos estavam batucando, não pensavam em revolta. Você vê, os escravos devem ter enchido o saco do senhor para que ele permitisse o batuque e o fazendeiro calculou que a permissão evitaria brigas mais sérias – porque, se você pressiona demais, o risco de revolta, fuga ou assassinato é maior. Têm casos de escravizados que mataram o senhor e seus feitores. Portanto, um senhor precisa administrar a dominação sobre os escravos porque, justamente, eles são sujeitos. No caso dos batuques, a formação de irmandades e associações eram muito importantes. Eram espaços de autonomia: alguns conseguiam a liberdade, fundavam uma irmandade de pretos e apoiavam as alforrias. Então eles se movimentavam em busca de sua liberdade e do direito de fazer a festa como quisessem. Alguns até se converteram e aderiram ao catolicismo, porque certamente devia ser mais fácil fazer festa para Nossa Senhora do Rosário com o batuque. Mas ninguém se subordinava à Nossa Senhora do Rosário: eles estavam era aproveitando para fazer o batuque do jeito que queriam. Hoje Nossa Senhora do Rosário é uma entidade que está no Brasil inteiro, homenageada por muitos pretos. Conta a história que foi ela que escolheu os pretos. A lenda diz que sua imagem estava na área rural e os brancos a descobriram e a levaram para uma igreja. Em seguida ela voltou para onde estava, e os brancos foram busca-la novamente, mas ela sempre voltava. Até que chegaram os pretos e levaram a imagem para a igreja deles – e lá ela finalmente se aquietou. Esse é outro exemplo dos agenciamentos desses escravizados e a historiografia passou a mostrar o quanto eles agiam em busca da liberdade, de vida, de autonomia, mesmo dentro de determinados limites. Sempre estudei exatamente isso: as estratégias dos escravizados para fazerem o batuque. Em 1888, na época da abolição, todas essas redes festivas foram muito importantes para as fugas, inclusive fugas em massa. Perto da abolição da escravidão os senhores não estavam mais conseguindo conter os seus escravizados nas fazendas. A princesa Isabel só assinou para evitar perder totalmente o controle. No século XIX já haviam muitos descendentes de africanos livres e libertos: Machado de Assis, Hemetério dos Santos… As associações negras fundadas depois da abolição tinham muitos descendentes de escravizados e foram modos importantes de exercer o direito à existência. Se é uma associação, a polícia pode exigir um monte de coisas, mas o tratamento é outro. Depois da escravização essas pessoas vão lutar por seus direitos, e a festa e as expressões do que a gente chama hoje de cultura negra são uma bandeira de luta fundamental. Porque ser cidadão é ter o direito de existir, de votar, de ser incluído, de participar, e essa foi uma luta dos libertos desde o século XIX. Muitos libertos eram músicos, maestros, engenheiros, professores, mas muitos outros queriam manter as tradições africanas. Através de fontes, memória oral, a gente tem descoberto cada vez mais homens e mulheres negros que desde a abolição construíram histórias de muito protagonismo – mas elas não são contadas, o que faz parte do racismo brasileiro. Não contar, não divulgar, não mostrar que a população negra é variada, diversa e construiu suas realizações com um enorme talento em muitas áreas da vida. Quantas professoras e professores, quantos maestros, intelectuais, líderes sindicais – todos negros – existiram ao longo do século XX? Mas não se conta. Só se consolida a imagem da população negra como “coisa” no período da abolição, ou então, depois disso, com a ideia de marginalização e pobreza. Não que não seja verdade – mas não é a única verdade. Como as crianças, negras e brancas, olham para essa história? Reforçando o racismo e um determinado lugar social para cada um.

IR: Ainda há resquícios do escravo-coisa na pesquisa brasileira ou o seu uso foi mesmo superado?

M.A.: Acho que ainda há resquícios. Dentro da historiografia é pouco, mas essa visão ainda está muito presente no jornalismo, nas escolas, nos livros didáticos, na televisão… O “escravo-coisa” ainda nos cerca bastante. E é difícil lutar contra isso, sabe? Você só deve ter visto a população negra na história quando aprendeu sobre a escravidão – depois, essas pessoas desapareceram. Então, você fixa na imagem que o negro está associado ao escravo – mas ainda no século XIX metade da população é negra e livre! É impressionante como essa construção é racista. Você não aprendeu sobre os jornais e as associações negras, onde se vê nitidamente a luta pela igualdade e pelo reconhecimento. A gente só aprende a imagem do inferiorizado e é muito difícil dar aulas assim. A criança negra não tem onde se espelhar, não tem referencial nenhum! E a criança branca também é um problema: ela se percebe como superior porque o negro, para ela, aparece sempre como pobre e inferiorizado. Isso tudo é muito sério e muito grave. Nós, historiadores, tentamos mostrar um outro lugar. Um lugar de talento, de força, de beleza da população negra. Ninguém é inferior, o que falta são oportunidades. Mas é difícil essa abordagem entrar nas escolas, os professores não estão preparados… O grande desafio é esse: você tem que denunciar o racismo. Para isso, você tem que falar da violência da escravidão e da pós-abolição e acaba reforçando aquele liberto coitadinho. Só que, ao mesmo tempo, você precisa dizer que ele lutava, que era forte, que tinha talento e capacidade. Esse é o movimento difícil, porque você joga com duas imagens que em princípio parecem contraditórias. Para o professor fazer isso, nossa… é um desafio. Por isso a educação antirracista está crescendo tanto. Nós, professores, precisamos sim pensar como a educação pode fortalecer uma abordagem mais justa e menos racista. É necessário que as pessoas aprendam o que significa o racismo e como nós o reproduzimos mesmo sem querer. Precisamos falar disso, mostrar os problemas, e depois ter materiais didáticos para mostrar essa outra história não contada – desses personagens negros que fundaram jornais, criaram associações, fundaram escolas e lutaram politicamente. A população negra nunca foi passiva.

“Precisamos promover esse contato, porque muitas vezes as crianças brancas só veem a população negra em um local de inferiorização. Você tem que mudar essa representação, essa visualização, esse campo visual.”

IR: E como a pesquisa chega no livro didático? Que outros apoios, iniciativas ou políticas públicas a senhora julga necessárias para que a pesquisa consiga se expressar no livro didático e inclusive para além dele?

M.A.: O livro didático é um dos caminhos. A formação do professor precisa ser periódica porque, depois desses anos todos de experiência, cheguei à conclusão que não adianta você dar uma excelente aula sobre racismo. Claro que é importante, mas tem uma outra questão que passa pelo afetivo, pelo sensível. Você precisa sensibilizar e essas estratégias passam pelo convívio e pela empatia. Mas como você faz isso? A gente precisa levar as crianças da escola para conhecer um quilombo, para conversar com quilombolas, e levar quilombolas até a escola para que eles contem a sua história. Precisamos promover esse contato, porque muitas vezes as crianças brancas só veem a população negra em um local de inferiorização. Você tem que mudar essa representação, essa visualização, esse campo visual. Inclusive as políticas públicas precisam mirar nisso, para que nós tenhamos secretarias que invistam aí também. Nós até temos bastante material didático, filmes, vídeos, sites que ajudam o professor a fazer um trabalho de sensibilização. Ler intelectuais negros, historiadores negros, literatos negros – as mulheres negras hoje estão com um protagonismo incrível. Mas tudo isso precisa estar acessível à escola e o professor tem que saber onde achar. Com o Ministério da Educação que a gente tem hoje está difícil achar qualquer coisa. O Ministério da Cultura tinha um programa incrível: A Cor da Cultura, com vários programas curtos muito legais, com personagens negros contando histórias não contadas e estimulando uma outra percepção da população negra. Mas nós estamos em um momento muito difícil. A Fundação Palmares também está toda desestruturada… Sensibilizar é algo que precisa estar nas políticas culturais e educacionais. Por exemplo, estabelecer lugares de memória, repaginar a cidade para incorporar uma população que não tem referencial. Ela anda pelas ruas e só vê ícones brancos. Aqui no Rio de Janeiro houve a descoberta do sítio arqueológico do Cais do Valongo durante uma reforma na região do porto. Era o ponto de entrada dos africanos na cidade e onde ficava o mercado dos escravizados. Foram feitas escavações e hoje o buraco está lá, sendo visitado. Virou patrimônio da humanidade. É bárbaro, porque os professores estão levando os alunos para contar a história e os movimentos sociais também vão. Rezam, fazem aulas, performances, danças, músicas, shows. O Cais do Valongo se tornou um local de referência para a população negra e para a comunidade das escolas cariocas, que é multirracial. Então as políticas públicas precisam incluir todas as secretarias e investir na ideia de multiplicidade. Eu dedico muito tempo à popularização do ensino de história – tenho o trabalho acadêmico, mas também me dedico muito à divulgação. Aí você divulga, divulga e vai dar uma palestra para professores da rede pública e pergunta se alguém ouviu falar em um filme que a gente fez e não, nunca ninguém ouviu falar. E eu me pergunto como fazer para que os nossos filmes cheguem nas escolas. Colocamos na internet, nas redes, em portais educacionais… mas o professor nunca viu. Como é difícil. É um desafio enorme entender como a gente pode se tornar mais presente, e olha que esforço não falta! De uns 5 ou 10 anos para cá tem muita gente se esforçando, mas pouco chega até a escola. O professor também é muito mal remunerado, não tem tempo para preparar as aulas, dá aulas demais… Acho que é um pouco de tudo isso, sabe? Mas a gente não desiste.

IR: Como a senhora avalia a receptividade do campo científico à participação das lutas sociais na construção da ciência?

M.A.: Acho que os movimentos sociais estão cada vez mais ocupando os espaços acadêmicos – não em todas as áreas, claro. Não vejo muito na medicina ou na engenharia, mas vejo nas humanas, na educação, na psicologia. Hoje existe um programa em algumas universidades chamado Encontro de Saberes. Ele foi capitaneado pela Universidade de Brasília, com o professor Jorge Carvalho. O programa se estendeu para outras universidades, inclusive aqui na Universidade Federal Fluminense. A ideia é convidar detentores de saberes populares – indígenas, quilombolas, pais de santo, jongueiros, maracatuzeiros – para darem aulas na universidade e recebendo para isso. Eles passam o semestre dando aulas e estudantes de qualquer faculdade podem fazer essas disciplinas – inclusive os da medicina e da engenharia, porque envolve saberes medicinais e de agricultura, por exemplo. O programa incentiva a construção de disciplinas que alcancem várias áreas e tipos de estudantes. Claro, ainda é pequeno, mas vejo uma aproximação maior, embora ainda estejamos longe do ideal. Ainda há muito preconceito dos próprios professores com relação a esses outros saberes que são importantíssimos. Mas existem iniciativas e a gente tem que se fortalecer nisso, nas redes de construção de diálogos entre saberes. Os médicos se formam entendendo o paciente como um objeto – e é a universidade quem forma. Mas já imaginou estudantes de medicina valorizando e aprendendo com saberes de cura indígenas e quilombolas? Para sonhar de novo, acho que a primeira coisa é esse governo acabar: assim a gente consegue sonhar grande de novo. Hoje estamos muito limitados, mas vai mudar. Há de mudar! Eu tenho esperança.

IR: Quais movimentos ou líderes negros e negras a senhora destacaria como cruciais na história brasileira – tanto no período da escravidão como na pós-abolição?

M.A.: No período colonial a gente tem o Henrique Dias, que foi um herói da Revolução Pernambucana. Ele chefiava o regimento dos pretos e se uniu aos portugueses para a expulsão dos holandeses, no século XVII. Ele foi um herói para os portugueses e inclusive recebeu terras por isso – era a presença de um homem negro e seus serviços sendo reconhecidos por Portugal. Muitos soldados negros estavam com ele, o que mostra o protagonismo da população negra em um momento crucial da história colonial. Eles participaram como homens livres, o que dentro da diversidade da população negra era extremamente legítimo. E hoje ninguém fala do Henrique Dias. No século XIX, eu escolheria a escritora maranhense Maria Firmina dos Reis. A gente não tem uma foto dela, sabe? Ela nasceu em São Luís, em 1822 e morreu em 1917, com 95 anos! Ela atravessou um grande período e escreveu livros e poemas abolicionistas. Uma mulher abolicionista, escritora… Não é o máximo? Não sei se ela era livre ou liberta – livre é quando você já nascia nessa condição, liberta é quem antes havia sido escravizada. Ela escreveu Úrsula e A escrava, e tem uma luta abolicionista importantíssima de denúncia da escravidão. Foi uma intelectual negra muito importante. No século XX houve o Monteiro Lopes, primeiro deputado federal negro, eleito no Rio de Janeiro em 1910. Teve um deputado negro eleito em 1910! E ninguém sabe dessa história. Voto negro, voto de pessoas negras. Ele foi um grande lutador antirracista, pela igualdade racial. E no século XX eu escolho a Maria Nascimento, primeira mulher do Abdias Nascimento, que fundou junto com ele o jornal Quilombo, do teatro experimental negro. Ela foi muito esquecida.

“Quando chegamos lá, me posicionei um pouco mais atrás, e dito e feito: os seguranças ficaram de olho nele. Então me diz qual é a liberdade que ele tem de entrar em um shopping? A população negra tem medo de entrar em alguns lugares, e isso é ter os direitos civis cerceados – mesmo que a proibição não esteja escrita na porta.”

IR: No período mais recente, quando ouvimos falar nas lutas pelos direitos civis, as grandes figuras que nos chegam pela mídia são as norte-americanas, como Martin Luther King ou Angela Davis. É como se por aqui esse movimento não existisse, ou não fosse digno de registro. Como a senhora avalia essa visibilidade?

M.A.: A gente sempre teve luta pelos direitos civis. O direito de casar, de frequentar locais, de andar por todos os lugares. Houve escravidão tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, então a luta pelos direitos civis começa desde que o primeiro escravizado pisa lá e cá. Essa batalha foi colocada tanto pelos escravizados quanto pelos libertos e livres. A guerra civil nos Estados Unidos acaba em 1865, e logo depois os negros conquistam direitos civis e políticos. No final do século XIX e durante o século XX esses direitos foram sendo retirados e o segregacionismo foi colocado. Depois do fim da Segunda Guerra – nos anos 50, 60 e 70 – é que a luta pela retomada desses direitos se tornou mais visível. No Brasil a gente não teve a mesma periodização, mas teve a mesma luta. A população negra não entrava em clubes brancos, por exemplo. A diferença é que lá o segregacionismo foi formal, estava no texto da lei, e o movimento foi muito focado no fim do segregacionismo legal. No Brasil o segregacionismo não foi escrito em lei – mas acontecia na prática. Não quer dizer que o nosso racismo seja menor, ele é apenas diferente. É muito cruel: não estava escrito na lei, mas a pessoa preta já sabia onde poderia ir ou não. É tão grave quanto. Tivemos várias lideranças negras brasileiras na luta pelos direitos civis ao longo do século XX, em jornais negros e movimentos políticos. Havia dois jornais muito importantes em São Paulo, O Voz da Raça e o Clarim da lvorada, entre muitos outros. Gente como Isaltino Veiga dos Santos e o próprio Abdias Nascimento foram fundamentais na luta antirracista do século passado. A luta pelos direitos políticos tocava a todo mundo que era pobre, e isso desde o final do Império porque para votar, via de regra, era preciso ser alfabetizado. De todo modo, claro, quem mais perdia era a população negra. Os direitos políticos para todos só foram conquistados com a Constituição de 1988, que incluiu os analfabetos. Tive um aluno que me convidou para ir ao shopping e disse “A senhora vai perceber como os seguranças só olham para mim”. Quando chegamos lá, me posicionei um pouco mais atrás, e dito e feito: os seguranças ficaram de olho nele. Então me diz qual é a liberdade que ele tem de entrar em um shopping? A população negra tem medo de entrar em alguns lugares, e isso é ter os direitos civis cerceados – mesmo que a proibição não esteja escrita na porta.

IR: Chimamanda Adichie diz que a multiplicação das histórias importa, porque a variação de perspectivas enfraquece estereótipos e repara a dignidade perdida. O que a pesquisa sobre os seres humanos escravizados e suas formas de resistência deslocou na senhora – como pesquisadora e como pessoa?

M.A.: Esse TED da Chimamanda é muito importante, uma intelectual nigeriana que denuncia os efeitos da história única. É o tema dessa nossa conversa, aquilo que nós aprendemos com uma única história da escravidão e da pós-abolição. O lugar subalterno do negro gera uma visão única, uma história única que congela o imaginário e não nos permite ver a história completa, justa, uma história que dê conta de toda a experiência da população negra e não só a da subalternização. Na história única, os locais de destaque são, no máximo, o samba e o futebol. Essa história diz quais são os locais que, de modo geral, a população negra tem que estar – de inferiorização. Se você a vê em outro lugar, parece sempre deslocada. Imagina as pessoas negras ouvindo isso, aprendendo isso. Elas têm que lutar contra o estigma dessa história única que a Chimamanda fala. A questão da branquitude é muito séria e rende uma outra entrevista, sobre como tudo isso que a gente está falando contribui para uma branquitude que “naturalmente” se coloca no lugar do privilegiado e nunca cerceado. Quem sofre essas violências precisa reconstruir sua autoestima em algum outro lugar. Fica muito difícil concorrer a um emprego ou se colocar em outros locais sociais, porque você precisa vencer inclusive a si mesmo – a sua baixa autoestima, a sua não-confiança. O branco, por outro lado, tem confiança demais e está sempre se colocando em um lugar superior. Então é necessário refletir sobre a nossa condição de privilégio: nós não somos os brancos, somos a cor universal. Para a branquitude, quem tem cor é o negro, é o índio, é o mulato. Branco é o normal, é o padrão. Olha como essa violência é poderosa. Quando comecei o magistério dei muita aula em escolas públicas, mas ainda não tinha essa reflexão. Claro que eu tinha consciência do racismo e via a dificuldade desses meninos, que eram negros e muito pobres. Dificuldade para circular na cidade, dificuldade para frequentar alguns locais – eles não tinham os direitos civis básicos. Me lembro que fiz um passeio no Pão de Açúcar com as turmas da escola porque queria dar aula de geografia para eles lá no alto. À medida que nós íamos andando, as lojas iam fechando. Me perguntei o que estava acontecendo e depois percebi. Então, precisei ter uma vivência de muito contato e muito convívio. Depois, quando já dava aulas na faculdade, tive alguns alunos negros que foram fundamentais. Quando comecei eram muito poucos, mas depois eles foram chegando. Eles me fizeram vivenciar o que eu dizia e é muito importante vivenciar, porque são caminhos de sensibilização. Hoje eu olho para trás e percebo que aprendi muito me sensibilizando. Tive um aluno que até hoje é meu amigo. Eu estava distribuindo trabalhos de grupo em um curso sobre História da América, que incluía a escravidão. Ele fugiu desse assunto e queria estudar a independência dos Estados Unidos. Eu achei aquilo estranho: como um rapaz negro não quer estudar a escravidão? Na aula seguinte eu falei para turma: “Preciso afirmar publicamente o meu preconceito. Não é por ser negro que um estudante precisa pesquisar a escravidão – ele pode estudar o que quiser”. No final do curso, ele me disse que se fosse escolher naquele momento, escolheria estudar a escravidão. Aí eu disse: “Ah, não! Assim você vai me enlouquecer! Eu aqui, desconstruindo o meu racismo, e você me diz isso. O que aconteceu?”. Ele me disse: “Martha, eu agora estou vendo que existe uma outra historiografia da escravidão onde eu posso olhar para os meus antepassados e ter orgulho deles”. Ele me contou que fugia das aulas sobre escravidão no ensino médio porque passava mal. Olha o dano que faz a um jovem uma história única, injusta, preconceituosa. Não sei como ele foi fazer História depois! Eu aprendi muito com ele sobre a importância de uma outra história e da representação das pessoas negras. Em casa, suas famílias os protegem: o amor filial era um sentimento muito forte que ele tinha. Então o problema é o espaço público, porque em casa ele é filho de uma família amorosa e trabalhadora, mas na rua é confundido com um bandido. A partir do ano 2000 comecei a trabalhar com comunidades quilombolas e jongueiras – e foi realmente o máximo. Jongo é uma dança afro-brasileira do sudeste que hoje é patrimônio cultural. O convívio mostra que temos muitas diferenças, mas também muito em comum. Nossa sociedade é muito guetificada, a cidade é muito segregada. Quantos amigos negros você tem? A gente vê o outro com desconfiança: um jovem negro de touca desponta na esquina e você já acha que ele é perigoso. Mas como assim? O meu filho também anda de touca e nunca foi preso ou abordado – mas seus amigos negros passaram por isso. Acho que essa nova geração tem mais trânsito em outros lugares, e a política de cotas favoreceu muito os encontros. A UFF era branca e hoje é colorida: os coletivos são muito importantes porque ali os encontros se fortalecem.

“A transformação está em curso. Eu tenho esperança de mudar essa política que vivemos hoje no país, mas também acho que as pessoas não esquecem os avanços que nós tivemos”

IR: Quais são os principais desafios dos estudos do pós-abolição – hoje e nos próximos anos?

M.A.: O maior desafio é a gente retomar políticas de integração, políticas de combate ao racismo, políticas de reconhecimento das terras indígenas, de distribuição de renda, de valorização das mulheres. São políticas civilizatórias que precisam ser retomadas. Esse país precisa voltar a se reconhecer como um país diverso. Precisamos encontrar caminhos para integrar, conectar, ligar essas pessoas que são marginalizadas no nosso circuito. Note que elas participam, elas estão ligadas e participam de tudo – mas em grande parte não são reconhecidas. Mas acho que, por exemplo, o mercado da literatura mudou muito. É um ganho. Hoje a gente tem muitos autores e autoras negras, você chega na livraria e tem uma estante só de literatura afro-brasileira. É muito legal. As pessoas precisam ler autores negros e negras, ter professores negros e negras, porque faz parte da sensibilização, e do reconhecimento do talento e da igualdade. Nós fomos educados para sermos racistas, então é um trabalho constante de conversar com a gente mesmo – em relação aos nossos preconceitos, aos nossos limites. À nossa branquitude. Essa discussão é muito recente, mas muito necessária, e nós, professores brancos, temos de fazê-la. A transformação está em curso. Eu tenho esperança de mudar essa política que vivemos hoje no país, mas também acho que as pessoas não esquecem os avanços que nós tivemos. Políticas de ações afirmativas que foram implementadas – e agora desmontadas –, mesmo que não tenham sido completas. Muita coisa ainda precisa ser feita, mas nada se compara com os retrocessos do governo atual. De todo modo, acho que os jovens negros não vão esquecer o que já se transformou na luta contra o racismo. Hoje você vê a presença de negros no jornalismo, na propaganda, na moda, na música – há um movimento de afirmação muito visível da população negra. E ninguém vai esquecer disso.

Por Instituto Racionalidades

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