Michel Foucault e o Mundo Pós-Ocidental

Por Tony Hara**

Estranho o destino daquele pedaço do mundo que chamamos Europa. No final da Idade Média, o rebanho pastoreado pelos padres se desgarra das igrejas e dos mosteiros. No século XVIII, o homem moderno nasce à luz da ciência, do saber racional e universal. Inebriado pela razão e pela fé no progresso, o europeu moderno se comporta no século XIX como se fosse o dono do mundo: ávido, ambicioso, violento. E na primeira metade do século seguinte, duas grandes guerras decretam o declínio do imperialismo europeu.

Foram 250 anos de intensa transformação planetária. Mas do ponto de vista do Extremo Oriente, a ocidentalização do mundo inteiro, pode ter sido apenas um instante de exceção, como imagina Foucault: De fato, pode ocorrer que, na história do Extremo Oriente na escala
dos milênios, essa pequena ocidentalização apareça como inteiramente superficial e como
um fenômeno que durou só dois séculos
¹.

Com o retorno da China ao centro do mundo, essa declaração de Foucault, dita há 50 anos, parece cada vez mais consistente. Da perspectiva chinesa da história, os dois últimos séculos foram realmente fora da curva. Extravio de um caminho instruído por cinco mil anos de civilização.

Na década de 1970, a China de Deng Xiaoping começa a se abrir para o mundo. O Japão e os Tigres Asiáticos (Hong Kong, Taiwan, Coreia do Sul e Singapura) despontam no cenário econômico. Agora se abre a era de uma cultura não ocidental do mundo capitalista², diz Foucault, em 1973.

Nessa nova era não ocidental, os europeus sentem um certo desconforto devido a sua fraqueza política, reconhece o filósofo alemão Peter Sloterdijk, em entrevista ao jornal El País, em janeiro de 2022. Grande parte de nossa população ocidental optou pela renúncia, não acredita mais na política. Um importante setor da população da Europa escolheu o privatismo, a vida privada como prioridade.[…] E mesmo os franceses, que sempre foram líderes em revoltas, agora estão cansados

Nos países europeus a revolução não é mais desejada com ardor pelas massas — observa Foucault numa conversa com o poeta japonês Shuji Terayama. Apenas uma minoria a deseja. E essa minoria está mudando a imagem da revolução recorrendo ao terrorismo ou a um elitismo extremamente intelectual. Hoje em dia [abril de 1976], a revolução acabou por se tornar, aos olhos das massas, alguma coisa de inacessível ou pavorosa.4

Dois anos depois, no templo zen de uma pequena cidade japonesa, Foucault fala novamente sobre o crepúsculo da Revolução: Desde 1789, a Europa mudou em função da ideia de revolução. A história europeia foi dominada por essa ideia. É exatamente essa ideia que está começando a desaparecer nesse momento.5

A ideia de Revolução perdeu seu encanto, a sua poesia por conta da falta de imaginação, segundo Foucault. Os homens do século XVIII e XIX possuíam ao menos a faculdade de sonhar com o amanhã da sociedade humana. […] De Rousseau a Locke ou àqueles que chamamos de socialistas utópicos, podemos dizer que a sociedade ocidental abundava de produtos férteis de imaginação sociopolítica6 — destaca o Foucault, no diálogo com o filósofo japonês Ryumei Yoshimoto. Daí a hipótese interessante ensaiada pelo francês no Japão: uma filosofia do futuro só poderá nascer fora da Europa, ou, então, deve nascer em consequência de encontros e de percussões entre a Europa e a não Europa.7

Falta de imaginação e um certo cansaço na luta contra a exploração capitalista que controla a maneira de ver, sentir, pensar e fazer de cada um dos indivíduos e da sociedade como um todo. No Ocidente, diz o filósofo, o saber ocidental, a cultura ocidental foram vergadas pela mão de ferro do capitalismo. Nós estamos excessivamente gastos para fazer nascer uma cultura não capitalista. A cultura não capitalista será não ocidental e, por conseguinte, cabe aos não ocidentais inventá-la.8

Será que uma cultura não capitalista só poderá florescer fora do Ocidente, como pensava Foucault nos anos 1970? A China atual é o lugar de invenção de uma cultura não capitalista?

É possível inventar uma cultura não capitalista usando instrumentos e meios criados pelo Ocidente capitalista?

O confucionismo e o taoísmo foram as filosofias tradicionais que deram forma ao pensamento e ao modo de vida chinês. As tensões e rivalidades entre essas duas filosofias ainda continuam vivas nas lutas contemporâneas vivenciadas no Império do Meio.

O Ocidente jamais experimentou o equivalente do confucionismo, explica Foucault numa conferência em Tóquio em 1978. Os ocidentais não foram submetidos a uma forma de pensamento que, refletindo a ordem do mundo ou estabelecendo-a, prescreve ao mesmo tempo a estrutura do Estado, a forma das relações sociais, as condutas individuais e as prescreve efetivamente na própria realidade da história.9

O confucionismo é ao mesmo tempo uma filosofia de Estado (uma ordem social) e um manual de conduta moral. Os efeitos dessa filosofia que se espalhou pelo Extremo Oriente se manifestaram nitidamente no decorrer da crise sanitária. Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano radicado na Alemanha, descreveu o jeito asiático de enfrentar a pandemia:

Estados asiáticos como o Japão, Coreia, China, Hong Kong, Taiwan e Singapura têm uma mentalidade autoritária, que vem de sua tradição cultural (confucionismo). As pessoas são menos relutantes e mais obedientes do que na Europa. Também confiam mais no Estado. E não somente na China, como também no Japão, a vida cotidiana está organizada muito mais rigidamente do que na Europa. Para enfrentar o vírus, os asiáticos apostaram fortemente na vigilância digital.10

No vocabulário chinês não há o termo “esfera privada”, explica Han. O Estado tem acesso irrestrito aos dados produzidos pelos usuários das plataformas digitais e de telefonia móvel. Cada click, cada atividade nas redes sociais ou deslocamentos na cidade são monitorados. O Estado sabe das preferências de cada um, sabe onde cada um vai e com quem. E dá recompensas e punições para quem anda na linha ou fora dela.

200 milhões de câmeras; drones monitorando ruas e pessoas confinadas; equipes de TI refazendo o percurso de um sujeito infectado, localizando e notificando via celular, todas as pessoas que tiveram contato com ele. Uma situação que para os europeus seria distópica — resume Byung-Chul Han –, mas que, pelo visto, não tem resistência na China.11

A ausência do exercício crítico tem a ver com os aparelhos de censura e repressão do Estado chinês, mas também com os princípios do confucionismo, que visam sobretudo o equilíbrio social. As vontades individuais não contam onde impera o coletivismo.

O filósofo-poeta Zhuangzi (ou Chuang-Tzu) aparece na tradição chinesa como o grande rival de Confúcio. Esse homem educado no Tao, não cultiva qualquer simpatia pela filosofia utilitária e controladora de Confúcio. Para Zhuangzi, o reino dos filósofos que se acham conhecedores do bem e do mal se transforma, inevitavelmente, em tirania e terror.

O filósofo taoísta tinha em mente uma outra forma de organização social: a sociedade de sábios rústicos, para usar aqui a feliz expressão encontrada pelo poeta Octavio Paz. Nela não há governo nem tribunais nem técnica; ninguém leu um livro, ninguém quer ganhar mais do que o necessário, ninguém teme a morte porque ninguém pede nada à vida. A lei do céu, a lei natural, rege os homens como rege a mudança das estações. A sociedade de Confúcio, imperfeita como todo ser humano, se realizou e se converteu no padrão ideal de um império. A sociedade de Lao-Tzu e de Chuang-Tzu é irrealizável, mas as críticas que os dois fazem à civilização merecem a nossa simpatia. Nossa época ama o poder, adora o êxito, a fama, a eficácia, a utilidade e sacrifica todos os seus ídolos. É consolador saber que, há 2000 anos, alguém pregava o contrário: a escuridão, a insegurança e a ignorância, ou seja, a sabedoria e o não o conhecimento.12

Há no movimento Tang Ping (que se traduz por “deitado” ou “ficar deitado”) algo da sabedoria taoísta. Deitar-se, fazer o mínimo possível, rejeitar a corrida rumo à fama e à riqueza; contentar-se com a vida simples que se leva.

Esse movimento de resistência à cultura 996 (jornada de trabalho das 9 da manhã às 9 da noite, 6 dias por semana), que o New York Times chamou de movimento “contracultural” e a BBC de “espiritual”, floresceu nas redes sociais chinesas em abril de 2021. E se tornou um viral através de memes, posts e produtos “tang ping” (camisetas, bonés, capa de celulares, etc.), chamando a atenção do Partido Comunista. Censura de mensagens, exclusão de fóruns de debates, proibição de venda de produtos; o Estado respondeu rápido ao movimento considerado “vergonhoso” pelos líderes políticos e empresariais chineses.

É bastante curiosa e emblemática, a mensagem que deu início ao movimento de recusa ao modo de vida capitalista na China. Surpreendentemente, o texto de Luo Huazhong faz referência a filósofos ocidentais. Assim escreve o jovem operário que largou o emprego e voltou para a sua província: Posso apenas dormir em meu barril desfrutando de um banho de sol como Diógenes, ou viver em uma caverna como Heráclito e pensar no ‘Logos’. Como nunca houve realmente uma tendência de pensamento que exaltasse a subjetividade humana nesta terra, posso criá-la para mim. Deitar é o meu movimento de homem sábio.13

Uma sociedade não capitalista pode ser irrealizável, como acredita o poeta mexicano Octavio Paz. A Ditadura do Mercado comanda nossas vidas, manipula nossos desejos, produzindo as alegrias do consumo, mas também uma onda permanente de frustrações, decepções e desilusões irremediáveis. Mais do que um consolo, esse diálogo transnacional entre o jovem chinês e os filósofos rebeldes do Ocidente, é um sinal de vida.

Para despertar do pesadelo niilista talvez seja necessário deitar-se e sonhar um sonho com o outro, distante no tempo e no espaço. Expandir e repovoar o mundo da imaginação, abrir o horizonte de possibilidades. Talvez a invenção de uma sociedade não capitalista seja uma tarefa de sonhadores, de poetas ou de sábios esquisitos como Heráclito, que preferia brincar com as crianças no pátio do templo de Ártemis a discutir o governo da cidade ao lado de homens ocupados somente com a riqueza e a fama. Homens possuídos por suas posses.

Notas

** Tony Hara – Doutor em História da Cultura pela Unicamp. Autor dos livros Ensaios sobre a singularidade (Intermeios, 2012), Coração rueiro (Kan, 2013), Saber noturno: uma antologia de vidas errantes (Editora da Unicamp, 2017), Artes de viver|Velhas verdades (Edição do Autor, 2021)

1Michel Foucault. Da arqueologia à dinástica. Ditos e escritos vol. IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.p.60

2 idem

3 Peter Sloterdijk. Vienen tiempos duros para quienes viven la vida moderna. In: El País, 29/01/2022.

4 Michel Foucault. O saber como crime. In: Ditos e escritos vol. VII. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011, p.69

5Michel Foucault. Michel Foucault e o zen: uma estada em um templo zen. In: Ditos e escritos vol.IX. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. p.84

6 Michel Foucault. Metodologia para o conhecimento do mundo: como se desembaraçar do marxismo. In: Ditos e escritos vol.VI. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.190

7 Michel Foucault. Michel Foucault e o zen. op.cit. p.83

8 Michel Foucault. Da arqueologia à dinástica. Ditos e escritos vol. IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.p.60

9 Michel Foucault. A filosofia analítica da política. In: Ditos e escritos vol. V. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006 p.41

10 Byung-Chul Han. O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã. El País, 22/03/2020.

11 idem.

12 Octávio Paz. Um chinês contra a tirania. Folha de S. Paulo. 21/04/1998.

13 Maroosha Muzaffar. An entire generation of Chinese youth is rejecting the pressures of hustle culture by ‘lying flat’. Independent. 09/06/2021

Por Instituto Racionalidades

Leia também em nosso site

Cursos em destaque

Fale com o Instituto Racionalidades