Isabelle Anchieta: “a imagem mais ambígua, aquela que mais escapa ao nosso controle é a imagem da mulher”

Por Varlei Couto

Isabelle Anchieta é professora, doutora em Sociologia pela USP e jornalista. Autora de “Imagens da Mulher no Ocidente Moderno”, trilogia que é o resultado de sua tese de doutorado, publicada pela Edusp.

Nesta entrevista, concedida ao Instituto Racionalidades, conversamos sobre alguns temas marcantes em sua obra, tais como as diferentes imagens produzidas sobre as mulheres indígenas tupinambás e sobre a entrada inaugural das mulheres na modernidade. Além disso, Isabelle também explicou o conceito cunhado por ela no decorrer da pesquisa, o individumanismo. Falou sobre a atual situação política brasileira e principalmente sobre o impacto do hiperindivualismo na contemporaneidade.

Instituto Racionalidades: Você produziu uma trilogia importante sobre a imagem da mulher no ocidente moderno. Por que pesquisar a imagem da mulher na modernidade ocidental? O que te instigou a entrar no tema?

Isabelle Anchieta: Interessante porque eu utilizei a mulher como uma figura, uma personagem que abre muitas portas para que a gente entenda os processos sociais. Meu objetivo era compreender como caminhamos no processo que chamo de uma crescente humanização, que concretamente significa quebrar os preconceitos raciais, de gênero e de classe. Esse foi um processo difícil e longo que até hoje não se completou de forma absoluta. Além disso, também entender o processo de nossa crescente individualização, ou seja, em que medida a gente vai buscar nossa liberdade, nossa autodeterminação.

Nesse processo observei que a mulher teve um papel central. Eu buscava uma personagem que pudesse me conduzir nessa longa trajetória e entendi que a mulher vai conquistando os espaços e passa ser uma protagonista da modernidade por várias razões: por desorganizar a ideia da família tradicional, quando busca um projeto autobiográfico ao dizer não ao papel apenas da mãe, buscando trabalho e uma vida pública. Ou seja, não foi por uma razão tradicional que busquei a imagem das mulheres. Além disso, as imagens sempre me fascinaram, as imagens humanas, eu queria fazer a trajetória da humanização e evidentemente eu queria ir por esse caminho.

Entendi, a partir de uma sociologia das imagens que a imagem mais ambígua, aquela que mais escapa ao nosso controle é a imagem da mulher. Foi nesse duplo sentido: primeiro entender o papel que as mulheres tiveram de fato na organização social, na organização história e na remodelação dos arranjos e por outro lado em que medida ela diz das contradições humanas, das nossas próprias ambiguidades. Nada melhor do que a mulher para nos contar um pouco dessa história, suas representações e como usaram essas representações também. Foi um grande trabalho.

IR: Qual a importância da arte para a desconstrução da imagem da mulher na modernidade ocidental e em específico no Brasil?

I.A.: Eu trabalhei com um conceito mais amplo do que o de arte. O conceito de imagem. Eu faço uma sociologia da imagem. Essa distinção é importante porque muitas imagens que eu trabalhei não foram consideradas obras de arte naquele momento.
Quando eu trabalho com os panfletos noticiosos do século XVI, das bruxas, inclusive do diabo, esse imaginário popular não era considerado artístico. Até as madonas, as imagens de Maria naquele momento eram imagens de culto. Por mais que fossem obras de grandes artistas, obras de arte, a função era muito mais de culto do que contemplativa. Abro o leque para o entendimento do que é arte, trabalhando com a ideia das visualidades e com as imagens, que são em geral documentos não utilizados pelos historiadores e sociólogos.
Exatamente porque as imagens são traiçoeiras, no sentido de que deformam a realidade, trazendo elementos dos sentimentos, as contradições e deformações. Como diz Peter Burke, um historiador inglês, a deformação das imagens é uma informação para pensarmos as mentalidades, os jogos de poder e de manipulação. Analisar as deformações da imagem como documento é fascinante. Elas dão conta das relações sociais vivas. As imagens possuem uma dupla função: ela testemunha, é um documento que traduz os acontecimentos, mas também é força ativa, alterando as relações, arma importante nos jogos de poder.

Michelle Perrot (historiadora francesa) diz que a mulher é antes de tudo uma imagem. Uma construção imagética que vai construindo os estereótipos, outro conceito importante em minhas pesquisas, a construção das estereotipias e sem as imagens talvez essas estereotipias não tivessem essa força e universalidade. Nós pensamos o conceito de imagens universais no contemporâneo, mas naquele momento as imagens também circulavam, eram a melhor forma de criação de certos valores morais e classificações sociais.

No Brasil, talvez a imagem mais importante seja a das mulheres indígenas tupinambás canibais, de como vão impactar fortemente o imaginário das bruxas na Europa. Trilhei o caminho inverso das pesquisas, que geralmente mostram certa colonização do olhar demonológico sobre a América. Se de fato há um olhar demonológico emprestado para a concepção da imagem da mulher brasileira, o contrário também é verdade. Tem duas fases esse olhar sobre a mulher no Brasil, sobre as índias. A primeira era o entendimento da descoberta do paraíso. Pensava-se ter encontrado Adão e Eva e que o Éden poderia ser um espaço geográfico.

Depois da descoberta do canibalismo, quando Américo Vespúcio traz os relatos do que acontecia dos rituais canibais, aí sim há uma visão demonológica, onde se constrói a imagem da índia tão temida, canibal, que impacta as imagens das bruxas na Europa.

Essa foi uma descoberta a partir da seriação das imagens, quando percebo que o caldeirão e o canibalismo só vão surgir na iconografia das bruxas depois de 1557, quando as imagens de Hans Staden começam a circular na Europa. Isso é fascinante. Entender como há uma circulação de imagens muito rica da América para a Europa.

IR: como se deu o processo de associação entre as mulheres indígenas tupinambás, consideradas bruxas, com o diabo no ocidente moderno?

I.A: Essa associação surge quando começa uma disputa entre a Igreja Católica e a percepção de que essas mulheres atrapalhavam certo monopólio salvacionista do mundo. As “bruxas” nada mais são do que mulheres de comunidades rurais que passam a entender o uso das ervas e passam a ter poder medicinal e de cura. Elas são as médicas dos pobres.

Isso confere a elas um poder muito grande não só nas comunidades rurais, mas também com a aristocracia, etc. Isso vai criar um problema, uma disputa de poder com a própria Igreja Católica e não sem razão a gente observa que quando a Igreja tenta definir, distinguir a ideia de heresia, o que é magia e o que é religião, há um embate muito forte, que é exatamente um período que dá início a uma caça às “bruxas”. Tanto é que existe um decreto papal dizendo que toda mulher que ousa curar é bruxa, e por isso deve ser perseguida, o que mostra claramente o papel dessas mulheres nessas comunidades, o poder que elas vão adquirir, enfim, como elas passam a incomodar a Igreja Católica. Foi uma disputa, portanto, que se dá exatamente nesse momento de consolidação da Igreja.

O diabo nasce como uma antítese mesmo de qual sobrenatural poderia ser aceito, se aquele mediado pelos homens que faziam essa conversa com Deus e o sobrenatural que supostamente era realizado pelas mulheres mediando esse sobrenatural com o diabo. Foi nesse período que as coisas começam a se complicar para as mulheres, que começam a ser perseguidas…

IR: A representação das mulheres tupinambás feita pelos viajantes e pela iconografia produzida no século XVI vai influenciar a imagem das bruxas, com a ideia do caldeirão e do canibalismo, tão arraigadas no imaginário europeu de início da modernidade. Como se deu esse processo?

I.A: Essa ligação surge em razão do Hans Staden, figura que passa no Brasil um período preso entre os tupinambás. É ele o responsável por construir uma espécie de etnografia fina do que seria a vida dos brasileiros tupinambás. É ele que vai mostrar o protagonismo das mulheres nos rituais canibais, de como elas participavam de todo o processo.

O caldeirão tem várias funções dentro do ritual canibal, desde produzir o cauim, que é uma bebida feita da fermentação da mandioca, bebida alcoólica, que era utilizada antes dos rituais pelos índios para que ficassem mais ativos, nervosos, e depois o caldeirão vai também participar de uma série de outras partes, desde escaldar o corpo da vítima, cozinhar as vísceras, etc. O caldeirão tem um papel visual importante dentro desses rituais e quem vai levar isso para a Europa em 1557 é Hans Staden, quando consegue escapar, mostrando então para a Europa como se dava, o que acontecia nesses rituais.

Isso causa um choque tremendo entre os europeus porque o canibalismo nunca existiu de fato, concretamente; sempre mitologicamente circulou em obras como a Odisseia, por exemplo. Ou seja, mais na mitologia do que propriamente de fato havia a ideia de uma habitualidade de consumo de carne humana, que seria a ideia do canibalismo.

Vários etnólogos e viajantes vêm ao Brasil e começam a relatar, mostrando que mais que um consumo diário de carne, se tratava de um consumo ritualístico. Aí sim se passa a chamar esse ritual de antropofagia, que era a ideia de matar o inimigo para restituir um parente perdido da tribo. Havia um sistema bastante complexo de vingança entre os índios e esse ritual era uma forma de restituição espiritual daquele ente perdido. Fala-se que eles comiam o inimigo para absorver as forças. Não era bem isso. Era para recompor uma pessoa que havia sido perdida nas guerras entre as tribos.

As mulheres vão estar sempre ao lado do caldeirão, tendo um papel de participação importante no ritual, o que causa um profundo espanto. Costumo dizer que Américo Vespúcio – e o fato dele também transmitir essas ideias –, vai ficar como responsável pela descoberta dessa América canibal e de certa forma da própria América. As pessoas estavam muito curiosas, já que a América fugia ao entendimento dos europeus.

A iconografia das “bruxas” que já estava estabelecida na Europa nesse período era a representação dessas mulheres portando suas vassouras e pequenos potes que traziam às mãos. Nunca o caldeirão ou qualquer referência ao canibalismo.

Essa referência começar aparecer até na composição pictórica, onde ganha centralidade, ficando o caldeirão no meio, no centro mesmo da representação das bruxas. É interessante perceber a ideia de uma belicosidade, de mulheres que são perigosas, traiçoeiras, mulheres que não se pode confiar. Tanto é que eles relatam, muitas vezes, que em uma parte do ritual, uma das índias passava a ter relações sexuais com o prisioneiro. É bem interessante como se dava esse ritual. O prisioneiro era de certa forma primeiro absorvido pela tribo e depois ele era assassinado.

O prisioneiro então passa a ter relações sexuais e o interessante é que essa mulher que então vive com ele como se fosse sua companheira no dia do assassinato ela chora, mas um choro falso, um ritual, um teatro. A ideia de que a mulher é falsa, cujas lágrimas também são falsas, circulam na Europa havendo um imaginário do perigo e da sensualidade dessas mulheres que seduzem e comem literalmente seus inimigos.

IR: Há uma agenda no Brasil contemporâneo das mulheres indígenas reivindicando espaços, lutando pela liberdade de existirem e pelo direito à terra e ao corpo, lutando por respeito, reivindicando a história. Como aquelas imagens do século XVI ainda reverberam na imagem da mulher brasileira hoje?

I.A: Quem mais influenciou o imaginário indígena não foi o século XVI, mas o século XIX, quando temos toda uma construção muito romantizada dos indígenas brasileiros, não só nas imagens, mas também na literatura, com Iracema, as Moemas, etc., que são figuras muito apaziguadas e dóceis. Há todo um apagamento do canibalismo no Brasil como se nunca tivesse existido. Vinga a imagem da ideia do bom selvagem e daquela figura que de certa forma teve que morrer para a República avançar, para o progresso acontecer. A ideia da Moema morta na praia são figuras que serão entendidas como dóceis, que se submetem ao controle e ao afeto do estrangeiro. São aquelas que choram pela ida do português, que vai embora, que ficam enamoradas, que se apaixonam pelos estrangeiros. Acho que essa imagem vai ser muito forte no país.

Mas justo agora no contemporâneo as imagens que têm sido resgatas das índias pelos artistas – eu estou lembrando especialmente de uma obra da Adriana Varejão – não resgatam a imagem da índia pacificada, mas exatamente a da índia violenta, canibal, que também diz de uma autonomia do feminino, que se por um lado no século XVI, isso dizia de um alerta, um perigo para essas mulheres sensuais e perigosas, agora no contemporâneo essa releitura é muito sofisticada no sentido de dizer de uma mulher que tem autonomia de si, que tem esse lugar do desejo e porque não, da violência também. Esse lugar que agora está sendo colocado pela arte contemporânea é muito interessante. Por que ela resgata o século XVI e não o XIX? Essa é uma pergunta muito bonita da História. Cada história resgata um período da História. Por que estamos resgatando esse período e não o outro?

Essa é uma questão importante porque traz as ambiguidades. O legal agora, que acho que é o que está acontecendo com as mulheres indígenas que estão nas redes sociais é que estão tentando quebrar os próprios estereótipos dos indígenas, para o bem e para o mal, já que a gente tem essas duas polaridades muito maniqueístas do índio: violento, traiçoeiro, que garimpa também a Amazônia, e por lado tem a ideia desse índio idealizado, puro, etc., que não pode ser contaminado pela cultura.

Penso que o que essas mulheres estão fazendo, ao contarem o dia-a-dia delas, é exatamente quebrar esses estereótipos e de como transitam nesses lugares ambíguos, ora se adequando, ora mantendo a tradição… Essa individumanização, ou seja, entender o indivíduo, percebendo que essas mulheres não podem dizer sobre todos os indígenas, mas de suas trajetórias e de como dialogam com sua cultura, é uma forma de não cair em estereotipias fáceis. O contemporâneo, se ele tem algo a dizer, é de a gente tentar quebrar e tentar ver o indivíduo tal como ele é, anda que ele participe de uma cultura e de uma tradição, lembrando que ele também tem uma trajetória dentro dessa cultura.

IR: Na sua trilogia da imagem da mulher no ocidente moderno você afirma que as mulheres foram as primeiras a entrarem na modernidade. Fale um pouco sobre isso.

I.A: Como as mulheres utilizam a marginalidade a favor delas! Nesse caso estamos falando basicamente de um período muito controlado pela ideia de moralidade e de castidade, baseado na imagem de Maria e como ela arrastou para a marginalidade todo um conjunto de mulheres que não cabiam dentro dessa conceituação, que são as prostitutas. Mas exatamente por estarem à margem da norma, por não terem que seguir essa norma, como elas poderão então agora, experimentar uma liberdade e até se educarem e se formarem, que são as grandes damas, as cortesãs italianas. Foi um pouco ali, na análise das cortesãs, e também em uma imagem que eu acho que é emblemática da modernidade, que é a Olympia, de Édouard Manet, considerada a imagem da modernidade. Fiquei pensando o porquê de essa imagem ser considerada como tal, porque há um consenso entre os artistas de que ela é a imagem da modernidade. Eu me dei conta, com essa imagem, de que quem tinha feito a primeira ascensão social, a primeira mobilidade foram essas cortesãs que eu estava analisando antes.

Essas mulheres se educaram, publicaram livros, tiveram uma ascensão econômica, tinham liberdade, coisas que para os homens não eram possíveis, dado os estratos sociais bastante rígidos. É muito bonita a análise das imagens. Eu sempre tenho esses insights a partir dessas imagens. Por que uma imagem é testemunha dessa época? O que ela está me dizendo? Foi tentando analisar a imagem da Olympia que eu me dei conta de que a modernidade dessa obra não estava no estilo artístico do Manet, ele não estava inovando completamente, nem trazia uma técnica diferente. A novidade se encontrava na temática. A gente tem uma prostituta como símbolo dessa modernidade tão atacada pelos modernos. Baudelaire, que era um grande amigo do Manet, que trocava cartas com ele, vai dizer isso. Também há uma série de críticas… Por que essa imagem causou tanta polêmica, tanto incômodo? Por que essa mulher que agora tem tanta autonomia, um lugar mesmo na modernidade causa tanto impacto?

Foi na Olympia que veio o start, que eu entendi que o arranjo já estava sendo quebrado pelas frestas pelas mulheres e como elas estavam quebrando por um revés absolutamente imprevisto, que foram as prostitutas, as cortesãs, ainda que o pedágio tenha sido altíssimo, isto é, o próprio corpo; como manipularam isso a favor delas, não quer dizer que não tenham pegado esse elevador social, subindo, ascendendo socialmente até em termos de poder. Verônica Franco, uma das cortesãs que analiso um pouco mais profundamente, é uma figura que fazia negociações políticas para a Itália, conseguindo territórios, tendo um poder político e uma entrada muito interessante na sociedade.

IR: Essas trincas produzidas pelas prostitutas influenciou a individualização da imagem de Maria? Essa imagem sofreu rupturas muito por conta das trincas causadas pelas imagens da cortesãs?

I.A: Também. Penso que são várias coisas que irão promover uma mudança na imagem de Maria. É um conjunto de grupos sociais, forças e disputas que vão acontecer. Se por um lado tem sim a chegada das mulheres e o poder diferenciado delas na Modernidade, também há outras coisas acontecendo que são interessantes, que é a chegada de certos grupos religiosos da Reforma e Contrarreforma. A própria Igreja irá sofrer grandes transformações, questionamentos. Os papas se envolverão em escândalos. Os dominicanos e franciscanos também farão uma reforma interessante ali dentro. Eles tinham que escolher outra imagem não tão idealizada e casta, a fim de tentar recompor essa Igreja que estava em ataque.

Então, as mulheres vão ganhando poder nessa disputa, mas também há algo acontecendo em paralelo, internamente dentro da Igreja. Tanto é que vai surgir a imagem de Maria Madalena, que vai ser a imagem da Contrarreforma. Uma imagem para que a Igreja católica tentasse ter poder novamente, mas agora de outra forma, com o pecado da salvação. Não tinha mais como negar que a igreja já estava maculada com várias questões morais. Ela precisava se recompor, inclusive visualmente atraindo os fiéis.

IR: Em que consiste o seu conceito de individumanismo? Em que momento ele emerge no contexto de suas pesquisas?

I.A: Por um lado, eu não tinha um neologismo, ele surgiu no meio do caminho. O que tinha eram noções, duas grandes noções que eram a ideia de que havia um processo diferente de as mulheres terem passado de grandes abstrações, estereotipias, para se tornarem pessoas. Elas vão passando de personagens, arquétipos até ganharem um rosto e agora isso está muito claro nas redes sociais.

Eu tinha esses dois conceitos, o de humanismo e de individualismo. Fui entender no meio do caminho como eles se cruzavam. Essa foi pra mim a originalidade. Na hora de armar e montar a conceituação é que me dei conta que um processo estava ligado ao outro. Até então pensava que fosse um processo em paralelo, que eu tinha que entender como e por que se davam… E aí eu entendi que o individualismo vai surgir do humanismo, ao contrário de serem processos separados, o que pra mim foi uma surpresa.

Isso porque a gente tende a entender que o humanismo vai desembocar no individualismo, mas não, como essa luta por reconhecimento, que foi a grande questão, o grande motor da minha pesquisa, de reconhecimentos ampliados vai cada vez mais à direção de reconhecimentos de indivíduos. Saímos de grandes estruturas para estruturas sociais mais democratizadas, massificadas. Aí sim, no meio do caminho é que surgiu o conceito de individumanismo, um conceito interessante porque é uma síntese onde mostro como esses dois processos se cruzam, e não caminham em separados, como geralmente os autores (como Gilles Lipovetsky) trabalham.

Esses autores me ajudaram a entender os conceitos gerais, mas eu cunhei (o conceito de individumanismo) no processo e na montagem da pesquisa, quando me dei conta desse cruzamento. Eu queria criar uma palavra que mostrasse esse cruzamento, daí o nascimento do neologismo nesse momento.

IR: Associado ao contexto neoliberal, como interpretar o impacto do hiperindividualismo no contemporâneo?

I.A: As Stars de Hollywood já vão ser a imagem desse processo levado à cabo, das mulheres terem um rosto no mundo. Por um lado ele é muito positivo porque diz de um governo de si mesmas. Pela primeira vez na história as mulheres puderam definir com que se casavam, se vão trabalhar, passando a ter autonomia e autodeterminação. O individualismo tem algo muito importante porque diz uma liberdade, uma sociedade mais democratizada, portanto, menos hierarquizada. Há fatores importantes sendo conquistados, mas também nós os levamos ao extremo, e todo extremo é muito complicado. A gente vive esse “hiper”, essa acentuação que não é pós-modernidade, mas uma hipermodernidade, isto é, uma acentuação de certos elementos que serão levados à cabo, muito ligados também, no caso dessas stars, a essa sociedade do consumo em que você tem que vender estilos de vida.

Hoje isso se encontra ao extremo. Pulverizamos e as influencers nada mais são do que mulheres vendendo um produto ou coisas a partir de um estilo de vida, em uma mistura do público e privado. A gente precisa buscar mais equilíbrio. Se eu tivesse que apontar uma proposta seria a de a gente voltar para o individumanismo porque o humanismo também diz de uma certa comunicação, uma comunhão com o outro.

O excesso de si leva ao vazio. Nós somos um espelho vazio e só nos recompomos no outro. Penso que as pessoas estão se dando conta disso, de que essa coisa autocentrada é marcada por uma solidão muito grande. Ela não tem algo que é fundamental para as relações sociais que é o afeto, aquilo que nos sustenta.

A gente deve deixar de fazer apenas selfs. É preciso virar a câmera para o outro lado, estabelecendo relações verdadeiras e concretas porque sem elas… É interessante perceber a infelicidade dos influencers, como que ela diz de uma depressão, porque ela diz de alguma coisa que não é completada pela autocelebração de si mesmo o tempo todo. Ela só é completada de fato por relações sociais concretas e verdadeiras, ou seja, por relações afetivas saudáveis.

Penso que é preciso sair de por detrás das câmeras e começar a recompor as relações. Todo excesso indica certo fim em si, uma tentativa de se buscar outro lugar. Acho que o hiperindividualismo também será sintoma de uma nova tentativa de configuração social e de certo esgotamento desse lugar; até porque é uma sociedade adoentada psicologicamente, que troca a religião pela psicologia, isto é, uma sociedade psicologizada, que diz também de um vazio social que muito tem a ver com o excesso de si mesmo. Há um adoecimento do eu, advindo desse excesso de si. É preciso aprender a recompor nossa diversidade, a convivência que até na política está muito claro de como estamos cada vez mais defendendo nossas próprias verdades, de não darmos conta da diversidade de ideias. A gente transforma isso numa retórica que não se mostra efetiva no sentido de não dar conta do diálogo e da convivência.

IR: Vivemos um contexto reacionário, de cultura do ódio e instigação da violência, permeado por práticas patriarcais e misóginas. Como pensar em saídas e propor possíveis outros caminhos?

I.A: Em 2013, quando começaram os movimentos sociais, até pensei que pudesse ter alguma coisa positiva nisso, a princípio. Brasileiro nunca se envolveu com a política. Sempre reclamamos que os brasileiros só se preocupavam com novela e futebol. Pela primeira vez começamos a nos engajar politicamente. Então pensei que essa paixão pela política pudesse amadurecer, sendo um momento que passasse a uma maturidade do debate. Apesar de ter visto que as coisas tomaram um caminho muito ruim, após 2013, sendo apropriadas por interesses políticos de todos os lados. Acho que ainda tem alguma coisa importante aí, ainda tem um debate político. Hoje as pessoas escutam esses debates políticos, mas elas se fecharam nos seus grupos, bolhas. Aí a gente não tem a possibilidade do diálogo, o que acontece inclusive com o jornalismo. Não há mais pessoas que buscam a mediação, mas sim comentaristas. Esse é um momento de muitos extremos, de paixões extremadas que levam a uma guerra sem fim, a um conjunto de revanchismos que não daremos conta de resolver. O que achei que seria uma etapa que traria uma maturidade foi o contrário. A maturidade não chegou. Radicalizamos e estamos inviabilizando as possibilidades dessa maturidade que só pode se dar num lugar de interseção e não em lugares extremos. As pessoas precisam sair de suas bolhas.

Erving Goffman, sociólogo canadense, num livro chamado Estigmas, diz que a única forma de quebrarmos os estigmas – que é isso que a gente faz: estigmatizamos o outro; a gente está nesse conjunto de estigmatizações simplórias do outro e por isso eu justifico o ataque a ele, porque eu o diabolizo. Essa é uma estratégia eterna, da idealização e diabolização. São estratégias de defesa e de ataque, de nos colocarmos no mundo no lugar do bom atacando o outro – é não valorizarmos tanto nossas diferenças. Eu também tenho um pouco de receio desses grupos hiperidentitários. Acho que temos que buscar discussões que incluam mais do que nos separem em grupos “hiper”. O hiperidentitarismo também é perigoso, afinal ele também é uma forma de hiperindividualismo. Não deixa de ser uma forma perversa que só nos impede da comunicação. As pessoas estão vazias por isso, está faltando a gente se entremear um pouco, se despolitizar um pouco e se humanizar mais. Até para que a política se humanize. Não no sentido de uma despolitização, de a gente sair do debate, muito pelo contrário. No sentido de não cairmos nesse lugar de a gente ser também, de certa forma, manipulados, marionetes, no final das contas, de certos personagens políticos que estão por aí e que conseguem manobrar muito bem de forma populista a população. A gente precisa recompor esse debate em outro lugar que não esse que está posto, nem pelos meios de comunicação, muito menos pela sociedade.

IR: Talvez como disse Guimarães Rosa, a saída esteja na terceira margem…

I.A: Na terceira margem do rio. É aonde eu gosto de navegar. Exatamente nessa margem do Guimarães. Acho que ela está muito distante de nossa situação. Espero que haja um esgotamento disso, porque isso só vai levar a uma aniquilação, a uma guerra, a uma coisa que não condiz… O brasileiro sempre foi violento, essa ideia do brasileiro pacífico também é um estereótipo. É legal ver os tupinambás no século XVI. O brasileiro é isso, cordial e canibal ao mesmo tempo. Essa violência não é uma novidade, sempre esteve presente em todos os movimentos sociais. É uma sociedade que guerreou, até na guerra da independência. Isso foi esquecido e acho isso tão estranho. Agora vou começar estudar a Maria Quitéria. Houve uma guerra de um ano na Bahia como se não fosse uma guerra de independência. Independência da Bahia não, mas do Brasil!

Nós sempre fomos belicosos, isso não é uma novidade. Está todo mundo espantado com a belicosidade do brasileiro, mas acho que sempre fomos belicosos… cordiais e canibais ao mesmo tempo.

Por Instituto Racionalidades

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