Ana Colling: “Não confio em nada que venha deste governo, especialmente para erradicar desigualdades”

Entrevista: Amanda Kaster


É um imenso orgulho que inauguramos um dos projetos mais queridos e aguardados pela equipe do IR: entrevistas mensais com grandes nomes brasileiros que vão muito além dos espaços acadêmicos sobre sua pesquisa, interseccionalidades e suas reflexões sobre o mundo que vivemos.

Nossa primeira convidada é Ana Maria Colling historiadora e pesquisadora do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), da UNESCO junto à Cátedra “Diversidade cultural, Gênero e Fronteiras” e no LEGHI – Laboratório de Gênero, História e Interculturalidade. Autora de diversas publicações, sua especialidade são os temas relacionados à história das mulheres, feminismos, educação e gênero, discurso e poder.


Entre suas obras destacam-se: A resistência das mulheres à ditadura militar no Brasil; Tempos diferentes, discursos iguais – a construção histórica do corpo feminino; Mulheres Kaiowá Guarani – Expressões; organizadora do Dicionário Crítico de Gênero (prêmio ABEU categoria Ciências Humanas 2016).


Ela aceitou nosso convite e respondeu a perguntas que tangem o campo da Educação, a situação do governo Bolsonaro com a exaltação à ditadura e, principalmente, avalia a relação do papel das mulheres no Brasil atual. Confira!


O seu livro “A Resistência da mulher à Ditadura Militar no Brasil” completou 24 anos e sei que a sra. está organizando uma nova edição para este ano. Para além do aniversário da publicação, este tema parece cada vez ser mais presente na vida dos brasileiros, mas, como é sua avaliação sobre como ele têm sido revisitados no campo da Educação?


A avaliação que faço é que após 25 anos da publicação de meu livro, o tema continua tão urgente e necessário quanto na época de seu lançamento. Apesar de inúmeras dissertações e teses tratarem da presença e da resistência das mulheres à ditadura militar, ainda são poucas as publicações que atingem o grande público. No campo da educação o tema também desponta, porque o desmonte de educação brasileira feita pelos militares só é comparável com o desmonte feito na atualidade pelo governo antidemocrático de Jair Bolsonaro. O desenvolvimento da cultura e da educação não interessa a governos ditatoriais, anti-democráticos e anti-populares. É só lembrarmos da perseguição e do exílio de Paulo Freire que propunha um método de alfabetização para os menos favorecidos e sua substituição pelo imbecilizante MOBRAL, para entendermos como os ditadores tratavam a educação. Sem falar na imposição de Educação Moral e Cívica, OSPB e EPB substituindo História, Filosofia e Psicologia.

Como a senhora avalia que este tema será retrabalhado e repensado após o fim do governo Bolsonaro, seja ele neste ou nos próximos quatro anos, caso ele seja reeleito?


Brasileiras e brasileiros estão esperançosos que ele e sua equipe, não se re-elejam. Também confiamos, resistimos e lutamos para que o próximo presidente, seja democrático, e após montar uma equipe de respeito, coloque a educação, a cultura, a ciência no lugar que merecem. Qualquer pessoa minimamente informada e inteligente sabe que um país que não investe em educação não tem futuro. Por exemplo, o tema que me provoca e me deprime, a violência contra mulheres e a população LGBTQIA+ somente pode ser combatida pela educação.

E a relação com o Arquivo Público do Rio Grande do Sul, um dos locais pesquisados para sua dissertação e consequentemente livro. Como as últimas gestões têm tratado dos documentos sobre este período, se é que eles ainda existem?


No caso do Rio Grande do Sul, os gaúchos e gaúchas estão tão mal quanto os(as) brasileiros(as). O descaso com a educação, e consequentemente, a pesquisa é flagrante. Lembro e gosto de frisar que só pude escrever este livro, pesquisar no Arquivo Público, sobre a ditadura, documentos do DOPS e SOPS, porque foi necessária uma intervenção política. Ainda hoje muitos militares e civis, apoiadores da ditadura ou até torturadores, estão vivos e isto dificulta o processo.


Há um movimento gaúcho que acompanha e cuida destes temas, ou a Comissão da Verdade, em nível nacional, é a única responsável, por assim dizer, por este acompanhamento?


Temos hoje, em minha avaliação, um ótimo lugar de pesquisa que são os documentos das Comissões da Verdade, que estão disponíveis. Também gosto de sugerir, para quem ainda não assistiu, o documentário Pastor Cláudio de 2017. Um ex-torturador que se converteu à igreja e resolveu falar à Comissão da Verdade.


Não sei se existe um “movimento” no Rio Grande do Sul, sei de pesquisadores(as) universitários que tratam sobre o tema. Aproveito esta questão para falar novamente da situação política e atual e o quanto ela impede alguns avanços. Um dos mais tristes e deprimentes casos da História do Brasil foi o golpe contra a presidente Dilma Rousseff. Primeira mulher a se eleger presidenta e ex-militante de esquerda. Quem não lembra de Bolsonaro dedicando seu voto ao impeachment ao coronel Ustra, conhecido como Tibiriçá, torturador de Dilma? E o alerta, ou sinais já dados, parece que ninguém se importou ou achou estranho e deslocado seu voto.

Neste ano, a Lei Maria da Penha completa 15 anos, o qual é sua avaliação do impacto dessa legislação no país no campo jurídico assim como na percepção da violência cotidiana contra a mulher pela população?


Este tema tem tudo a ver com a perseguição que mencionei há pouco sobre a ex-presidenta Dilma, mas quero realçar aqui que a violência contra a mulher e os feminicídios são uma praga internacional, caso de saúde pública, e o Brasil desponta como o 5º país do mundo que mais mata mulheres e o primeiro que mais mata pessoas trans. Volto aqui a falar da Educação: não é por falta de leis, nosso país é reconhecido mundialmente como que possui o melhor aparato jurídico para coibir a violência contra a mulher, mas isto tudo parece letra morta que se bate contra a cultura que o homem pode dispor do corpo da mulher como bem entender.


Se analisarmos os feminicídios, por exemplo, quem morre são as ex: ex-namoradas, ex-noivas, ex-esposas, ex-amantes. Muitas vezes o assassino se suicida logo depois. Por que não se mata antes? É a pergunta que não quer calar. “Se este corpo não foi meu não será de mais ninguém”, dizem eles. Como historiadora lembro que entre as permanências na história brasileira desponta o patriarcado (o poder de uns sobre o corpo de outras). Agora com outras moldes, outras formas de atuar, e a violência e o feminicídio é o efeito desta cultura.

E no campo da violência digital? A internet abriu possibilidades de denúncia, mas também de exposição maior das mulheres a novos tipos de assédios.


Pessoalmente gosto muito desta onda de denúncias. Porque parece ser esta uma saída, (junto com a educação sempre). Quando assistimos mulheres ricas e famosas denunciando abusos, homens ricos e famosos sendo acusados de assédio, abusos e violências, pode ser um incentivo para todas denunciarem. Por outro lado, o assédio, muitas vezes somente psicológico, pode ser tão nefasto quanto o físico. Vou arrolar aqui estas novas formas de detectar violências, que apareciam como singelas ou naturais. Possuem nomes em inglês porque criadas na Inglaterra e EUA para questões específicas. Retirei de um texto meu publicado em 2020 em uma revista da FURG:


Mainsplaning: man (homem) e explaning (explicar), que significa no novo vocabulário feminista, explicar para uma mulher, algo, que na maioria das vezes ela já sabia, utilizando um tom de superioridade, paternalista, de quem se acha mais inteligente, simplesmente por ser homem. Muitas vezes explicam, traduze, sem serem solicitados. A escritora norte-americana Rebecca Solnit, utilizou este termo em 2008, em seu ensaio Os Homens Explicam Tudo para Mim para dar nome a uma situação que ela havia vivido numa festa: um homem tentando lhe esclarecer do que se tratava um livro que ela mesma tinha escrito.

Manspread ou man-sitting: man (homem), spreading (espalhando), que significa a expansão do sexo masculino. Homens que se sentam em transportes públicos com as pernas abertas, ocupando mais de um assento. O termo surgiu em 2014 em um blog nos EUA. Neste mesmo ano o metrô de Nova York começou a alertar os passageiros a fecharem as pernas. Como no vocábulo anterior este também repete a postura machista de homens que se acham superiores em qualquer lugar.

Gaslighting: tortura psicológica do homem sobre a mulher, numa tentativa de que ela desacredite a si mesma, duvidando de sua inteligência e muitas vezes de sua sanidade mental. Uma violência sutil que se manifesta em frases como “você está imaginando coisas”, “você está louca”. Muitas vezes as informações são distorcidas ou inventadas para favorecer o abusador e ter total controle sobre ela. O gaslighting é bem comum e pode aparecer não só nas relações amorosas, mas também no trabalho e até nas amizades. O termo apareceu no filme Gaslighting (À Meia Luz, no Brasil), de 1944. Nele, um homem convence a esposa (Ingrid Bergman, que ganhou o Oscar pelo papel) de que ela está louca, para roubar sua fortuna.


Bropriating: bro (de brother, irmão), appropriating (apropriação), é usado quando um homem se apropria de uma idéia levantada por uma mulher. Mais do que isso, este conceito acompanhado do Manterrupting, a interrupção da fala de uma mulher por um homem, que em seguida, a repete como sendo sua. Outra forma de Broppriating é o silêncio sepulcral após uma mulher propor algo, e logo depois, o mesmo ser proposto por um homem e ser recebido como uma ótima idéia. Isto pode acontecer em reuniões de trabalho, na academia, etc. Este termo surgiu no artigo “How Not to Be ‘Manterrupted’ in Meetings”, publicado na revista Time em 2015.

Nos últimos dois anos há um grande movimento na política nacional contra a violência política contra as mulheres. Com as políticas de cotas para mulheres candidatas e também com a perspectiva de que haja uma mudança de direção no governo federal no próximo ano, a Sra. acha que haverá uma mudança considerável no tratamento das mulheres?


Na questão das cotas para as mulheres nas eleições, saudamos quando foram implementadas. Mas a cultura masculina na política é tão forte que logo percebemos que as mulheres colocavam seus nomes somente para completar a lista de candidatos. Por outro lado, lutaremos muito, todas mulheres antifascistas e democráticas pela derrubada de Bolsonaro. E, a partir daí, lutar por medidas sem desigualdade de gênero e sem violências contra mulheres e LGBTQIA+. Eu, pessoalmente, só consigo antever mudanças, se forem implementadas políticas nas escolas, do pré-escolar às universidades.


No que tange a educação, o Novo Modelo do Ensino Médio tem mudanças na carga horária e na organização curricular. Se este modelo for implantado, o que as novas gerações devem ganhar ou perder conhecimento no que tange a história das mulheres?


Tudo a perder. Inicialmente não confio em nada que saia deste governo, especialmente no campo da cultura, educação e de políticas públicas para erradicar as desigualdades. O que esperar de um ensino médio que não privilegia História e Filosofia por exemplo? Espaços privilegiados para debater as relações desiguais entre homens e mulheres, entre mulheres, homens e os LGBTQIA+. Encontrar com Deus na goiabeira não é mais possível.

Em uma entrevista recente, a sra. declarou que “Todos e todas historiadoras(es) que trabalham com história das mulheres, relações de gênero, sexualidades são devedoras à Foucault”. A aqueles pesquisadores/as que não são familiarizados com o trabalho dele e que gostariam de começar a entender mais sobre história das mulheres, que obras você recomenda e por quê?


Continuo muito fã de Foucault, apesar de muitas feministas decretarem que não podemos mais ler obras escritas por homens, especialmente europeus. Mas é impossível entender as relações de poder entre os sexos, por exemplo, sem ir à Foucault. Tenho, há muitos anos, oferecido aula sobre Foucault, uma introdução ao seu pensamento. É um autor difícil para os iniciantes, mas depois que dominamos sua linguagem, seus pressupostos, tudo fica maravilhoso.


Sugiro como leitura inicial duas obras: “Vigiar e Punir. A história da violência nas prisões”. Mais do que se informar sobre a história das prisões (é tão importante que o Direito usa muito) a história do poder sobre os corpos é fundamental. E o segundo livro que indico é “História da Sexualidade volume 1. A vontade de saber”. Segue na mesma linha de Vigiar e Punir, apresentando novos conceitos e nos fazendo pensar muito.


Conheça a obra de Foucault nos cursos do Instituto Racionalidades:


Escolas, Corpos e Disciplinamentos



Foucault, os Feminismos e a História

História, filosofia e corpo: cristianismo, feminismo e crítica do presente


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Até a próxima!

Por Instituto Racionalidades

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