“A vida social, a coletividade, só se aprende na escola”, diz Alfredo Veiga-Neto

Entrevista: Amanda Kaster

A quem interessa a falta de crítica no campo da Educação? Como será a relação social dos alunos que se reconhecem apenas com a tela do computador em suas casas como referência de sala de aula. Em resposta a esses questionamentos, o Prof. Dr. Alfredo Veiga-Neto aceitou o convite do Instituto Racionalidades para uma entrevista, refletindo sobre a crise educacional em nosso país e afirma que o descaso com as mudanças tecnológicas é manifestação de uma crise maior, mais ampla, e que traz a escola como ponto essencial para entender as formas de pensar e estar no mundo que foram constituídas na modernidade.

Alfredo Veiga-Neto tem uma trajetória multidisciplinar em sua formação: graduado em História Natural e em Música pela UFRGS, possui mestrado em Genética e doutorado em Educação pela mesma universidade. Prata da casa, é professor titular do Departamento de Ensino e Currículo e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, coordenador do Grupo de Pesquisa em Currículo e Contemporaneidade (GPCC/UFRGS) e integrante do Grupo de Estudo e Pesquisa em Inclusão (GEPI/UNISINOS/CNPq), além de manter o site Foucault et alii, destinado a aproximar grupos de investigação, docentes, estudantes e pesquisadores interessados na pesquisa do filósofo francês.

Autor de diversos artigos e livros, atua principalmente nos temas de estudos foucaultianos, filosofia pós-metafísica, estudos de currículo, crítica pós-estruturalista e interdisciplinaridade, dentro do campo da Educação. Publicou, entre outros: Crítica pós-estruturalista e educação; Estudos culturais da ciência e educação; Foucault & a educação.

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Em 2016, o Sr. abriu o 6º Siepex da Uergs falando sobre a importância da abertura para o diálogo e opiniões diferentes, especialmente no ambiente acadêmico. Em tempos de cancelamentos e de disputas narrativas cada vez mais complexas na internet, este tema se torna cada vez mais importante. O senhor reafirma essa posição?

Sim. Reafirmo. No Brasil estamos passando por uma fase muito difícil, de divergências e de polarização política muito acentuada, que carrega consigo outras polarizações, como a religiosa e a cultural. E num país tão diversificado, tão cheio de diferenças e tão desigual, isso tem uma repercussão muito grande. Isso acontece em todas as sociedades, praticamente, principalmente na contemporaneidade, que alguns chamam de pós-modernidade, mas no Brasil isso é ainda mais acentuado.

Penso que nos últimos cinco anos, especialmente depois do advento dessa pandemia, que eu chamo de sindemia, as polarizações se acentuaram mais. E isso não significa que há apenas pólos distintos, mas que há intolerâncias entre esses pólos, que não há conversação possível, até porque vivem em mundos diferentes, em mundos, representações e imaginários sociais muito diferentes. Por um lado, isso é bom, pois não faz sentido pensarmos em um mundo homogêneo e uma sociedade de ideias únicas, mas por outro essa exacerbação dos pólos prejudicam muito o funcionamento da sociedade.

Isso é alimentado, inclusive, como uma estratégia política que remonta o fim do século XIX e o início do século XX, quando se gestaram as ideologias fascistas e nazistas. Temos alguns personagens importantes, pseudo intelectuais do início do século XX, como Guénon que deixou alguns herdeiros, entre eles, aqui no Brasil, o Olavo de Carvalho, nos Estados Unidos o Steve Bannon, e temos tantos outros influenciados por estas ideias, como o próprio Mussolini. É uma postura de entender os outros como inimigos: não como adversários nem como diferentes, mas como inimigos que têm que ser dizimados. No Brasil essa postura não está presente apenas na direita, mas também no campo da esquerda, nos imaginários sociais de grande parte da população, o que nos é muito prejudicial.

E de que formas podemos navegar na pós-modernidade das redes em busca de progresso e união das pautas humanistas com o cenário que se apresenta neste momento da falta de diálogo até mesmo entre os campos da esquerda? Ao te ouvir falar, pensei na máxima de Sun Tzu: “Dividir para Conquistar”.

Exatamente. A falta de diálogo é uma característica muito forte e parece que dominante, até mesmo em grupos que até há pouco tempo se acertavam, se afinavam ou que, pelo menos, se toleravam. Talvez hoje a palavra-chave, infelizmente, seja intolerância. Ou seja, quanto mais diferente ele for, menos eu aceito o outro.

Mas… como enfrentar, como viver nesta tempestade? São muitas as propostas que estão sendo discutidas sobre este tema. Eu estou participando, por exemplo, de um grupo de pesquisa na Unisinos, filiado ao CNPq, chamado GEPI sobre inclusão. E esta pesquisa não é apenas sobre a inclusão de minorias, mas sim a pesquisa sobre a inclusão do outro em geral, de compreender a “outridade” (ou alteridade), que é a única forma de exercer de fato a empatia. As experiências de exclusão são interessantes de se trabalhar, pois muitas vezes quando um indivíduo se vê fora do seu local habitual, viajando, por exemplo, em que ele é a minoria, somente aí é que ele vai sentir os problemas da exclusão na sociedade.

No GEPI temos uma grande rede de pesquisadores interdisciplinares, temos visto muitos autores trabalhando questões ligadas às políticas de inclusão. Inclusão não significa igualdade, a noção de que todos seremos iguais, mas está ligada à equidade, uma distribuição justa e ética das oportunidades e a partir das capacidades de cada um. Não é uma “geleia geral” onde todos seremos iguais, nós preservamos as nossas diferenças e as diferenças dos outros, não tentando trazer o outro para o meu lado, a pensar como eu. “Contra a mesmice”, costumamos dizer. Esta é uma luz no fim do túnel que vejo no sentido de vencer estes primeiros embates aqui no Brasil contra a ideologia do tradicionalismo.

O tradicionalismo não é simplesmente reacionário, ele é conservacionista, contra a modernidade e o iluminismo, que quer que a população mantenha a ausência de crítica. Crítica sobre a sociedade e sobre nossos próprios atos. O chamado cancelamento, por exemplo, é uma atitude autoritária ligada a este mesmo tipo de pensamento, porque segue a lógica da intolerância contra a outridade.

Falando de internet, um dos temas mais importantes destes últimos dois anos é a digitalização do ensino. Há um abismo imenso entre as escolas estaduais e particulares. O Brasil sempre foi um país desigual, mas com a pandemia vimos e ainda veremos essa desigualdade mais latente. O que o Sr. vê de cenários e/ou soluções possíveis?

Essa pergunta é muito pertinente para o momento em que vivemos, pois não somente o Brasil é um país desigual, como ele está se tornando mais desigual a cada dia. A digitalização acentua um fenômeno muito próprio da contemporaneidade, que é a solidão: cada um no seu quadrado, que se manifesta das formas mais lamentáveis possíveis.

Há cerca de 4 ou 5 dias tivemos uma experiência muito triste, que foi a formatura de uma turma de Engenharia. Na sala onde se reuniam os cerca de 30 formandos, todos na faixa dos 20 a 25 anos, foi servido um café e eu fiquei observando o silêncio entre os presentes, em um dia que deveria ser de celebração. Apenas alguns falavam entre si e muito pouco. Isso indica que a maioria não se conhecia. Em parte pela estrutura de matrículas – aquela ideia de turma coesa do início ao fim do curso já não existe mais -, mas mostrava que eles se conheciam mal, pois passaram pelo menos os últimos dois anos se comunicando apenas pela tela do computador. Este convívio digital não tem nada a ver com a convivência do refeitório acadêmico, da cantina, da condução, dos encontros sociais que se têm nos corredores… as pessoas acabam por se afastar.

A solidão é algo que é contrário aos rituais da ideia tradicional da escola, com a sala de aula presencial e o professor(a) ali à disposição do estudante, tanto na educação infantil, quanto na universidade. A solidão leva ao egoísmo, que se manifesta em outras áreas da vida, como a recusa do uso de máscaras por aqueles que julgam que esta ação é pessoal, em vez de coletiva, por exemplo.

Como reverter essa situação? Restringir as práticas de educação remota às conferências, aulas magnas e outros eventos pontuais e acentuar o convívio social da escola. A casa é uma coisa e a escola é outra. A escola é espaço público e aprendemos a conviver em espaço público efetivamente vivendo nele. Não falo isso como um professor antigo, conservador, mas sim como alguém que vê sentido na existência da sala de aula, dos corredores, da sala de professores, e outros tantos espaços, na educação prática das crianças e dos adultos, que não pode ser substituído por espaços fechados como condomínios, clubes e igrejas, ou muito menos ainda pela família. O homeschooling é um equívoco profundo. A modernidade se constituiu em práticas coletivas onde a escola moderna teve um papel fundamental, não apenas no que se trata do iluminismo, mas também da diferenciação do seio familiar e do espaço coletivo. Se aprende muito em casa, mas a vida social, com a diferença, com a coletividade, com os outros, se aprende na escola.

Quais os efeitos do uso permanente das plataformas digitais para a educação brasileira?

O primeiro deles é justamente a imensa quantidade de mensagens que trocamos e, por consequência, acabamos apenas por passar os olhos e não absorver o conteúdo e tudo que está ali incluído. Isso acaba por criar uma cultura de superficialidade, de aligeiramento, que não é benéfico para ninguém. Isso faz com que as pessoas mal leiam o assunto e passem adiante, tanto para quem manda quanto para quem lê, sem falar das abreviações e da grafia da internet que perpassa para o mundo real. O que acontece é uma banalização do conteúdo que lemos e que produzimos.

Isso tem a ver com a prática de se dar livros resumidos para os alunos. Dom Casmurro, de Machado de Assis, por exemplo, é uma maravilha com profundidade humana, social, estilística e gramatical, coisa de gente grande. Mas não se dá a obra de fato para que os alunos leiam, se dá o livro resumido, que, em 10 páginas tenta condensar tudo o que foi escrito. Isso é um desastre. Claro que não se deve dar um livro deste calibre para crianças de 10 ou 12 anos, mas para os formandos do Ensino Médio, com 17, 18 anos, estes deveriam lê-lo na íntegra. Essa prática não é nova, mas agora, com o advento da internet, é estimulada pela oferta de sites com o resumo do resumo em pdf que apresenta em três parágrafos “tudo o que você precisa saber sobre o livro”.

Não sou contra as mídias digitais. O suporte não é o problema, assim como nós estamos fazendo esta entrevista online e há muitas vantagens sobre espaço, tempo e oportunidade de ir a lugares inimagináveis a partir do mesmo espaço físico, mas deve saber como usar, quando usar e qual é o sentido de usá-lo. Assim como a televisão não substitui o teatro, ou ver a imagem uma reprodução de uma obra de arte não substitui a experiência de ver de perto, por exemplo, a Monalisa no Louvre. A experiência humana é outra e isso, infelizmente, talvez se perca com o tempo.

Durante a pandemia, os casos de violência doméstica aumentaram exponencialmente. Outro tema que permanece em alta são as discussões de gênero e sexualidade no ensino, por exemplo, as crianças e adolescentes que são abusados sexualmente em sua maioria por pessoas de seu círculo social e não sabem que estão sendo e a manutenção dos altos índices de gravidez na adolescência. Como o senhor analisa o papel da escola neste tema, em especial com os retrocessos do governo Bolsonaro?


O que conhecemos como a tríade do Iluminismo-Modernidade-Democracia está diretamente ligada à escola, pois é ela que coloca todo este progresso em funcionamento: o desenvolvimento científico e tecnológico, o afalbetismo, o aumento da expectativa de vida.. tudo isso está ligado à escola moderna. Tirar a escola de jogo ou diminuir o papel da escola como apenas “mais uma instituição” é ferir de morte a ciência, a tecnologia, a arte, a saúde e a própria democracia. Por isso que eu não uso mais o conceito de pandemia, e sim de sindemia covidica, seguindo um autor estadunidense, que propôs na revista The Lancet – uma das mais importantes no campo da saúde pública, o uso da palavra sindemia. Não é apenas um capricho médico ou se inventar palavra para aquilo que já existe. Mas, neste caso, não havia antes a interpretação de uma doença que afetasse todas as outras atividades humanas, como a própria escola. Claro que temos que considerar aqui, por exemplo, a Peste Negra no século XIII na Europa, que matou milhões de pessoas, que teve também algumas relações com outros ramos da atividade pública, como a Economia, a Religião e a Arte.

Mas uma grande diferença para essa situação que vivemos hoje é a mudança radical das atividades humanas: a economia, o turismo, a cultura e a própria Educação. É por isso que a sindemia é a palavra mais adequada, pois apesar do agente patogênico estar presente, a doença faz uma síntese dos efeitos em várias outras atividades humanas. No caso das crianças, o vírus não apenas as afeta, como aconteceu infelizmente milhares de mortes infantis pela Sars Covid-19, mas também pelo isolamento necessário, as crianças frequentam cada vez menos as escolas. Muitos dizem que elas podem aprender em casa. Podem aprender os nomes dos rios do Brasil, os afluentes da Amazônia, quem foi Álvares Cabral… mas isso é apenas uma parte pequena da educação. Viver com, conviver socialmente, com afinidade e também com desafetos – que tudo não os agrada – é a parte que não se aprende pela tela.

Este tipo de pensamento é o que leva à estultice, que é a palavra correta e bonita para a burrice. Quantas vezes já não nos deparamos com pessoas ditas capazes que acreditam em notícias falsas ou teorias da conspiração – principalmente sobre a Covid-19 – que não são mal informadas, mas incapazes de fazer as conexões entre o que leem e a compreensão de fato sobre o que recebem de informação. Nosso país está sendo gerido por uma classe política que não compreendem pois não querem compreender. E, num país cheio de estultos fica muito difícil dialogar e fazer com que as pessoas compreendam os impactos que vão além do problema em si, como estes que tu apontou.

Como o senhor analisa o novo ensino médio e a geração de alunos que vai se formar sem a obrigatoriedade das aulas de história, geografia, filosofia e sociologia? O que Foucault diria de uma proposta curricular como esta?

Não só é preciso cada vez mais investimento de atenção, financeiro e de prestígio nas escolas de educação básica, ensino fundamental e médio. No caso da Ciência, não basta ensinar apenas história com dados: quando começou tal guerra, quando terminou, quem foi fulano de tal… Isso são fatos históricos e algumas relações entre fatos históricos, que não deixam de ser importantes e necessários. Mas, mais do que ensinar uma matéria específica é o que eu chamo de Educação Científica. Na história, ensinar os fatos e também as relações entre eles e mostrar aos alunos como refletir sobre como estes fatos se repetem, por exemplo, como é a relação entre as etnias de um determinado conflito, fazê-los ir além do dado bruto. Ensinar ciências é importante, mas Educação Científica é mais importante, ensinar gramática é essencial, mas Educação literária é outra coisa. Isso só a escola faz. E, se o currículo é fraco ou falho, nós estamos condenando toda uma geração do futuro à estultice. Só vai aprender como pensar e a relacionar uma coisa com a outra quem tem Educação: entender a relação do uso de máscara e a chegada das vacinas com a queda do número de mortos pelo Coronavírus quem compreende gráficos, e mais além, ao entender isso fazer uso da máscara e se vacinar, ou seja, trazer isso para o mundo prático quem é ensinado a isso.

Há um autor que eu gosto muito, falecido há pouco tempo, chamado Oliver Sacks, que tem uma obra vasta em português, que teve uma experiência com a neurofisiologia maravilhosa, como médico e como pesquisador. Ele explica este tipo de fenômeno muito bem. Por que uma pessoa dança melhor que a outra mesmo com o número igual de horas de prática? Existe talento, mas também existe uma arquitetura neural que o predispõe a ter mais sucesso naquela situação. Isso não é um destino fechado, mas ele foi ensinado, estimulado, mas também tem a capacidade de performar aquela habilidade. Só tem empatia quem é ensinado a ter empatia. Basta ver a biografia dos facínoras para ver que muitas vezes, lhes faltou o ensinamento da empatia ou os traumas da infância não lhes permitiram a capacidade de entender e se relacionar com o outro.

Por fim, pensando em um futuro onde haja uma mudança de governo federal para o próximo ano. De que forma o Sr. vê a possível reconstrução e reconstituição do sistema educacional brasileiro para um modelo mais acolhedor e com formação crítica para os alunos?

Espero que uma imensa maioria das pessoas em nosso país saiba essa resposta: ou nós queremos um país para o futuro ou nós vamos continuar andando para trás. Agora, o que vai acontecer eu não sei. Depende das habilidades, das tolerâncias, depende às vezes da falta de arrogância política e também da arte (que eu não possuo) de convencer os outros. Eu tenho muito medo de qualquer polarização extrema, intolerante e doentia: se continuarmos neste caminho, o país só tem a sofrer.

Confira as obras de Alfredo Veiga Neto aqui.

Até a próxima entrevista!

Por Instituto Racionalidades

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