Novos associativismos negros e desafios de tradução: em busca de equivalências (diálogos subalternos) e a compreensão da fragmentação¹

Por Danilo de Souza Morais²

A entrada no século XXI é também marcada no Brasil pela emergência de um novo ator social ou conjunto de sujeitos da construção democrática: as juventudes negras. Sabe-se do protagonismo de jovens afro-brasileiros/as, nas diversas formas de associativismo chamadas de movimento negro desde o início do século XX, mas tal condição era frequentemente tomada apenas como um dado etário e não um elemento constitutivo da identificação e para a ação. Desde as mais conhecidas expressões como a Frente Negra Brasileira nos anos 1930, o Teatro Experimental do Negro já nos anos 1940-50, ao Movimento Negro Unificado em fins de 1970, há jovens na organização desde a base e como lideranças.

Demandas, agendas, discursos mobilizados a partir da articulação entre diferenças etárias/geracionais (juventude) e étnico-raciais (negro/a), porém, são uma especificidade dos anos 2000. O 1º Encontro Nacional de Juventude Negra (ENJUNE, 2007), como espaço político-societal (MORAIS, 2013) é exemplar da síntese destes novos sujeitos. Os discursos/demandas, que constituíram aqueles sujeitos, faziam um trânsito entre certa essencialização – como nas referências frequentes ao “afro-centrismo” – e a maior contextualização e aceitação da contingência – o documento final tem mais de 100 propostas que vão desde demandas de jovens quilombolas, a LGBTQI+, estudantes universitários/as, mulheres negras.

Argumentei que o diálogo subalterno ou a produção de equivalências (LACLAU, 2008) na primeira Conferência Nacional de Juventude (1ª CNPPJ, 2008), promovida pelo Governo Federal, espaço político-institucional em que se lança na cena pública este associativismo jovem negro dos anos 2000, é que viabiliza que a escolha da principal prioridade desta conferência, eleita pelas/os delegados/as de todo o país, tenha sido transformar o documento do ENJUNE em política pública de juventude. Destaque-se, deste processo, o significante privilegiado do combate ao “genocídio contra a juventude negra” (MORAIS, 2013).

Apontamentos sobre o pós-ações afirmativas e o associativismo via redes

Quase vinte anos após o ENJUNE, as formas de expressão de associativismos negros juvenis parecem distintas. A consequência de políticas educacionais exitosas numa inicial democratização no acesso ao Ensino Superior, mais de duas décadas após a conquista das primeiras formas de ação afirmativa, para acesso de afro-brasileiros/as em Instituições Públicas e Privadas (com cotas, reserva de vagas, pontos de bonificação, bolsas de estudo), o maior alcance da internet e dos dispositivos móveis para acessá-la, são contextos para configuração de novos léxicos, aos quais a militância negra das organizações “analógicas” e tantos intelectuais negras/os temos dificuldade de compreender e com os quais estes/estas temos dificuldade de nos fazer entender.

Neste processo inventividades e simplificações subjetivas estão longe de ser pares de oposição: maior acesso aos aparatos técnicos (com celulares e nas redes sociais via internet) e aos espaços antes reservados aos grupos do privilégio racial e de classe (os cursos e formação universitários), auxiliam inúmeras novas expressões relevantes de associativismo e intervenção de negras e negros, em especial jovens, mas não se traduzem necessariamente em potencialização da agência coletiva. A cena pública mediada via redes sociais, na balança entre essencialização e contextualização que identifiquei no emergente movimento de juventude negra nos anos 2000, aparentemente pende hoje ao essencialismo, uma simplificação dos termos em debate (e que viabilizam/inviabilizam a agência). Arrisco dizer que essa não é uma especificidade da dimensão das relações raciais, mas alguns termos ativistas de grande circulação atual (estão no hype, conforme expressão corrente nas redes) nessa dimensão, tais como “lugar de fala”, “apropriação cultural” e “racismo estrutural” – conceitos relevantes e com significativa trajetória intelectual, apesar de suas fontes e usos díspares –, mas também algumas categorias mais duvidosas como o “colorismo”, são usados como se fossem significantes vazios (de fato são significantes flutuantes), supostamente sempre intercambiáveis e explicativos (sic) de toda a complexa ordem social racializada, diferenças e desigualdades no contexto nacional e transnacional.

As controvérsias que ganham atenção pública, no espaço/tempo midiatizado pelas redes, clamam por uma opinião/posição imediata de todas/os/es e sobre tudo. Tais intervenções são menos refletidas pelos sujeitos (pela aceleração do tempo) e menos mediadas de maneira intersubjetiva, quando comparadas às formas de associativismo fundadas “analogicamente” (com organização mais perene, encontros face a face, lideranças explícitas, base territorial), assim parecem destacar a fragmentação dos sujeitos que se constituem destes discursos. “Ninguém me representa”, pode ser tanto um lema que clama por formas menos hierárquicas de organização político-societal, quanto também pode ser a afirmação de um individualismo atomista (TAYLOR, 2000). Em abordagem sociológica se sabe que processos de individuação são compatíveis e andam juntos com formas intensas (mesmo que não percebidas) de interação social e vida coletiva. O que parece particularmente preocupante é que tem feito par com o individualismo atomista um coletivismo autoritário – visto nas matrizes discursivas de ode à empresa capitalista privada, fundamentalismos religiosos, militarização e punitivismo penal.

Coletivismo autoritário e associativismos juvenis

Mesmo ainda carecendo de melhor formulação, identifico de maneira breve e a seguir o que compreendo por coletivismo autoritário. Tanto deve ser entendido o fenômeno como adesão difusa aos discursos que articulam uma ou mais das matrizes acima destacadas (ode à empresa capitalista privada, fundamentalismos religiosos, militarização e punitivismo penal), quanto também são formas de associativismo por elas habilitadas, ou seja, configurações político-discursivas e ação política explícitas, constituem a meu ver formas de coletivismo autoritário no Brasil contemporâneo. Uma das expressões mais conhecidas, em termos associativos, de sintonia ao coletivismo autoritário (indissociável do individualismo atomista), que emerge ou se fortalece na 2ª década do século XXI no país é o Movimento Brasil Livre – MBL, fundado nos anos de preparação ao golpe parlamentar de 2016 (SANTOS, 2017). Seus membros se entendem como “liberais”, o que parece significar de fato defender a total desresponsabilização para a forma empresa e ao “empreendedor” (que em trabalho autônomo/intermitente/informal se pensa como um “indivíduo empresa”), bem como a intervenções de ataque a quaisquer princípios e conquistas em termos de direitos humanos, possíveis no contexto nacional após a Constituição de 1988. Ao mesmo tempo esta forma de ser “liberal” sustenta, por exemplo, o fechamento de exposições de arte que considera imorais – como o caso da bem-sucedida campanha do MBL pelo cancelamento da exposição Queermuseu, no ano de 2017 em Porto Alegre . A organização, cujas figuras públicas são jovens em sua maioria, com grande presença nas redes, apoiou a eleição à presidência de Jair Bolsonaro e nos momentos finais de seu mandato se diziam críticos do presidente. Mesmo assim, reafirmavam seu apoio à agenda de Paulo Guedes, conhecido especulador do mercado financeiro e então ministro da economia de Bolsonaro. Não é um dado irrelevante – o que necessita de análise mais detida da performatividade deste movimento – identificar que duas das primeiras grandes lideranças públicas do MBL, o vereador de São Paulo Fernando Holiday (ativista contra ações afirmativas para a população negra e anti-movimento negro) e o deputado federal Kim Kataguiri, eleitos após o clamor reacionário do golpe de 2016, são jovens e não brancos.

Críticas injustas aos novos associativismos, bem como potencialidades e desafios

As críticas de maior visibilidade aos novos contornos de associativismos agenciados por jovens negras/os, com certa frequência transbordam precariedade analítica. Não só essa crítica vem da branquitude acadêmica e política estabelecida, mas inclusive aparece em certos segmentos ditos progressistas e de esquerda, que operam sem reflexão sobre sua colonialidade. Chamam de vários nomes pejorativos uma galera (composta de juventudes negras, mas não apenas) efetivamente muito diversa, que hoje intensamente entra e se destaca nos embates na cena pública das redes, como se todas/os/es pudessem ser reduzidos ao individualismo atomista aqui mencionado. Provavelmente a expressão mais simplista, que interdita a troca e entendimento mútuo seja a acusação de “identitarismo”.

Em contrapartida, associativismos negros que se pensam como “de periferias” ou periféricos – portanto, com incidência no espaço-tempo local/comunitário, mesmo que também inseridos em redes nacionais e transnacionais–, destacando-se na atuação de interface político-cultural e ao menos em parte potencializadas/os pelos resultados exitosos das ações afirmativas na educação, apesar de alguma fragmentação, demonstram o quanto devemos levar à sério e considerar esses novos léxicos, que se apresentam aos que veem de fora como suposto caos e cacofonia. Configurações político-discursivas, em seus elementos de reiteração de formas de dominação (em contextos de aproximação maior ou menor com as matrizes discursivas de coletivismos autoritários) ou com elementos transformativos da ordem racializada, bem como as linhas de intersecção entre ambos, provavelmente estão aí presentes. Neste ponto preciso reforçar uma posição que expressei em outros trabalhos: a racialização, nas condições prevalentes no Brasil, não é “só mais uma” dimensão de nosso ordenamento social autoritário e super-hierárquico, ao contrário responde por parte indissociável da hegemonia em nossa modernização conservadora, ao longo do século XX (MORAIS, 2011) e do neofascismo do século XXI. Assim, a racialização e o racismo são inescapáveis para a compreensão efetiva de fenômenos contemporâneos como o encarceramento em massa ou a legitimação da precarização do trabalho, em suas formas clássicas e na plataformização ou uberização (ABILIO; AMORIM; GROHMANN, 2021) – questões bastante objetivas, como se sabe. São tarefas prioritárias, portanto, dialogar e potencializar associativismos que contribuam para o enfrentamento e experimentos de superação da racialização.

Teremos capacidade de auxiliar na tradução, para aqueles/as dedicados/as à pesquisa, ensino e intervenção por meio de políticas públicas e/ou mobilização social (intergeracional e intrageracional), possamos captar as potencialidades, melhor compreender os obstáculos e dialogar com esses novos contornos do associativismo negro de juventudes? Para a ação política e a intelectualidade negras, bem como para aquelas/es, de quaisquer identificações étnico-raciais, sendo pessoas comprometidas com a desconstrução da racialização, parece-me este um dos grandes desafios atuais.

  • Notas
  • 1 Adaptação da contribuição do autor, originalmente discutida em 2021 e atualizada em 2022, ao debate interno do Grupo de Pesquisa (CNPq) Transnacionalismo Negro e Diáspora Africana.
  • 2 Sociólogo e professor. Doutor em Sociologia (PPGS-UFSCar), docente efetivo da FHO (Centro Universitário da Fundação Hermínio Ometto – Araras/ SP) e professor substituto do DS-UFSCar (Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos – campus São Carlos/ SP).
  • 3 Ver https://exame.com/casual/recebi-mais-de-cem-ameacas-de-morte-diz-curador-da-exposicao-queermuseu/, acessado em: 02/03/2023.

Referências

ABILIO, Ludmila; AMORIM, Henrique; GROHMANN, Rafael. Uberização e plataformização do trabalho no Brasil: conceitos, processos e formas. Rev. Sociologias, Porto Alegre, ano 23, n. 57, mai-ago 2021, p. 26-56.

ENJUNE. Relatório Final do 1º Encontro Nacional de Juventude Negra, Lauro de Freitas, Bahia, mimeo, 2007.

LACLAU, Ernesto. La razón populista, Buenos Aires, Fundo de Cultura Económica, 2008.

MORAIS, Danilo de S. Política de reconhecimento das diferenças étnico-raciais no Brasil: ações afirmativas e a política para a Educação Superior pública no governo Lula. Rev. Ideias, Campinas, v. 3, ago. 2011, p. 81-99.

MORAIS, Danilo de S. Movimento de Juventude Negra e Construção Democrática no Brasil. In: Menezes, J. A.; Costa, M. R.; Araújo, T. C. S.. JUBRA: territórios interculturais de juventude. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2013. p. 283-308.

SANTOS, Wanderley G. A Democracia Impedida. O Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: FGV, 2017.

TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos, RJ, Edições Loyola, 2000.

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