Maria Berenice Dias: “Nós vivemos em uma sociedade absolutamente conservadora, machista, sexista e preconceituosa”

Por Pedro Schlee Soler – Cientista Social, Mestre e Doutorando em Sociologia

Maria Berenice Dias é uma advogada, jurista e ex-magistrada gaúcha nascida na cidade de Santiago. Sua trajetória na luta pela justiça social começou muito cedo, quando percebeu na própria pele os obstáculos enfrentados pelas mulheres em suas profissões. Foi um trabalho árduo. Como a primeira mulher a tomar posse na magistratura do Rio Grande do Sul cinquenta anos atrás, ela viveu um processo extremamente avesso às pessoas do sexo feminino.

De lá para cá a jurista só ampliou seu leque de prioridades na defesa dos direitos humanos. Começou a atuar com famílias plurais – como a união de pessoas do mesmo sexo -, defendendo também as mulheres e a liberdade afetiva. Para Maria, justiça rima com amor e inclusão.

Recentemente, a jurista liderou trabalhos importantes para a população LGBTQIA+ no Brasil, tendo uma visão aguçada para as necessidades das populações trans. Compomos essa entrevista inédita em uma conversa sobre sua trajetória, percepções e luta. Que este momento seja de reflexão e inspiração para todos/as que sonham e constroem uma sociedade mais justa.

A entrevista pode ser conferida abaixo:

Maria, onde surgiu a sua percepção da necessidade do engajamento nas pautas LGBTQIA+ e, consequentemente, como se deu a formação do termo homoafetividade?

A sensibilidade para essa pauta nasceu da minha própria experiência como vítima da discriminação e da exclusão, quando eu decidi ingressar na magistratura do estado do Rio Grande do Sul. Durante mais de 100 anos eles sempre recusaram a inscrição das mulheres no concurso pelo simples fato de serem mulheres. Aquilo me doeu muito e eu tive que travar uma verdadeira guerra. Nem foi uma batalha, foi uma guerra. Precisei lutar muito, inclusive para que eles não diminuíssem as nossas notas. Essa discriminação me perseguiu por toda a carreira. Eu sempre fui promovida só por antiguidade, nunca recebi nenhum convite. No exercício da magistratura eu me dei conta que as mulheres não eram só discriminadas para serem juízas: elas eram discriminadas pela justiça, eram discriminadas pela lei. E aí criei esse caminho de buscar mostrar essa discriminação de que as mulheres historicamente sempre foram vítimas, até no Poder Judiciário. Me dediquei ao direito das famílias, como eu chamo hoje em dia, porque ali as mulheres sempre sofreram mais discriminação, a ponto de perderem a guarda dos filhos. Se elas fossem culpadas pela separação, perdiam o direito a ter alimentos, perdiam o direito de continuar usando o nome que eram obrigadas a adotar quando casavam. Elas perdiam até o direito ao nome. Tudo isto é discriminação com relação à mulher. Passei a questionar e acabei criando um Instituto. O IBDFAM: Instituto Brasileiro de Direito de Família busca uma justiça mais rente à realidade da vida, mais ética, impondo obrigações e assegurando direitos que estão fora dessa moral judaico cristã e seus conceitos de culpa. Ao me aprofundar nisso eu percebi estruturas de vivências familiares que, ainda que constituíssem famílias, não estavam ao abrigo da tutela jurídica do Estado. As uniões de pessoas do mesmo sexo não eram reconhecidas, pelo contrário, eram totalmente inviabilizadas. O preconceito sempre foi muito grande. Essa luta começou no ano 2000, e eu via que as pessoas tinham uma repulsa maior em falar em homossexual porque lembrava muito o sexo. Mas na verdade a relação não é da ordem da sexualidade, é da ordem da afetividade. Família é uma relação de afeto e gera direitos e obrigações. É até um neologismo bem raso. Se família é uma relação de afeto – têm famílias sem casamento e até famílias sem sexo, como aquelas formadas entre pais e filhos -, então existe essa outra família porque essas uniões também são baseadas na afetividade. Daí eu criei a expressão homoafetividade. Num primeiro momento ela sofreu uma grande rejeição por parte dos movimentos sociais, mas caiu no gosto do Poder Judiciário. A Justiça abraçou esse termo – parece que ficou mais palatável admitir a validade desses relacionamentos. A partir daí os demais direitos foram avançando e outras entidades familiares foram reconhecidas.

A senhora esteve e está inserida no feminismo. Essa luta levou a outras lutas, como a das populações LGBTQIA+? Se sim, qual a importância de uma intersecção desses movimentos?

Em um primeiro momento o movimento feminista não abraçava a causa da homossexualidade feminina. Uma estratégia masculina muito bem-sucedida foi a de desqualificar a expressão “feminismo”. Feminista eram aquelas mulheres feias, mal-amadas, que ninguém quis, sapatão… por isso as mulheres não aceitavam o rótulo e isso arrefeceu muito o movimento. Tanto que até hoje tem gente que continua dizendo “eu não sou feminista, sou feminina” – como essa tal de Damares, que nem chamo de ministra porque ela nunca ministrou nada. “Eu não sou feminista, sou feminina” é prova de absoluta ignorância. Ser feminista não é uma prerrogativa das mulheres, mas de pessoas inteligentes. Acho que os homens têm que ser feministas. Está mal essa história de que a mulher ganha menos e trabalha mais, que apanha em casa e tem sua liberdade de ir e vir absolutamente cerceada. Infelizmente se sujeitam a ser alvo de qualquer tipo de agressão e isso a gente vê em todos os níveis. No próprio Supremo Tribunal Federal, até mesmo as ministras que integram a Corte se queixam de discriminação por parte de seus pares. A ministra Cármen Lúcia, quando foi presidente, mais de uma vez declarou que as mulheres têm dificuldade de falar porque são interrompidas pelos colegas – e isso em um número muito maior do que interrompem os homens. É uma estatística mundial. Então o movimento feminista sempre esteve distanciado e divorciado do movimento lésbico. Participei do Congresso Internacional da ONU das Mulheres, em Pequim, e as lésbicas que lá estavam eram vistas como personas non gratas dentro do movimento. Muitas pessoas falavam que antes as lésbicas recusavam o feminismo e que agora queriam participar do movimento. Mas isso evoluiu e de uma forma bem significativa. Dar as mãos para avançar em termos de conquistas, de direitos. Aliás, se nós juntarmos os segmentos minoritários, formamos a grande maioria. Mulheres, a população LGBTQIA+, negros, refugiados… é a maioria da população. Então os movimentos se reforçam, principalmente se a gente perceber, por exemplo, a população trans, das travestis e transexuais do sexo feminino. Elas são mulheres e é uma conquista difícil, dolorosa. Todos esses direitos desses segmentos demoram. O delas demora mais, elas são alvo de mais discriminação ainda. É uma identidade visível, porque se percebe, se reconhece e se vê que está dentro de uma pessoa trans. Já os homossexuais não necessariamente são reconhecidos, às vezes não são alvo de tanta rejeição na família ou na escola, mas os trans têm até a questão do banheiro. Então, há uma evasão escolar muito grande e, portanto, uma baixa qualificação e a dificuldade no mercado de trabalho. Levou muitos anos para se admitir a possibilidade da troca do nome no registro, se exigia até a realização de cirurgias ou perícias com interrogatórios. Então avançamos muito, mas acho que avançamos com mais celeridade quando andamos de mãos dadas com outros movimentos.

Como a senhora vê a atuação do STF nas questões LGBTQIA+, como a equiparação do crime de descriminação LGBTQIA+ ao Racismo, a alteração do nome, reconhecimento do gênero escolhido e acolhimento por parte do SUS?

Nós vivemos em uma sociedade absolutamente conservadora, machista, sexista e preconceituosa. Esse contexto se reflete no Legislativo e agora de uma maneira muito mais saliente pela influência perversa dessas religiões de cunho fundamentalistas religiosos, que abriram um retrocesso muito severo. Para conseguirem se eleger, parlamentares do Poder Legislativo e do Poder Executivo vão atrás desses segmentos conservadores porque eles são a maioria. Então os políticos acabam abraçando essas bandeiras, transformam Bíblias em verdadeiro cabo eleitoral – não por acreditar nisso, mas para assegurar o voto e garantir a reeleição. Um discurso conservador, de família tradicional. Nem sei o que quer dizer uma família tradicional, nem sei que família é essa. Mesmo a Sagrada Família não tinha nada de tradicional. Maria casou grávida. O filho não era do marido, e o marido acabou fazendo uma adoção à brasileira: registrou como dele um filho que não era dele. Jesus tinha dois pais, então era uma multiparentalidade. Isso de convencional nunca teve nada. Mas, no âmbito do Legislativo, não se avança. Até hoje não se conseguiu aprovar uma lei no Brasil. O primeiro projeto é de 1995, um projeto da Marta Suplicy, e de lá para cá nada avançou. Nunca foi levado a plenário absolutamente nada. Então onde é que se conseguiu avançar? No Poder Judiciário, porque eu comecei essa luta enquanto magistrada, enquanto presidente de uma câmara de família, onde eu percebi que não aparecia nenhuma ação sobre uniões de pessoas do mesmo sexo. Então comecei a falar e reivindicar, e escrevi meu primeiro livro sobre essa temática. Não adiantava ficar sentada no tribunal esperando cair algum processo para ver se a gente julgava a favor, porque normalmente eles eram poucos e muito mal instruídos. Os advogados pensavam que não adiantava julgar, que não teria repercussão. Acabei criando o site Direito Homoafetivo justamente para divulgar e comecei a ver o que mais tinha no Brasil. A minha ideia, um pouco ingênua, era de conseguir um volume muito significativo de decisões da Justiça concedendo direitos e, em função disso, acabar pressionando o legislador a legislar para não perder o espaço de poder. Avançamos não graças ao Poder Judiciário, mas porque articulei comissões de diversidade sexual e gênero em todo o país. Foram mais de 200 comissões, uma delas nacional, em que elaboramos o Estatuto da Diversidade Sexual. Ele foi apresentado por iniciativa popular, com 100.000 assinaturas, para buscar incluir na lei o que foi conquistado na jurisprudência. Isso é importante porque, ainda que as decisões estejam consolidadas, a composição dos tribunais muda. A inclusão de um evangélico já mudou a orientação segura que o Supremo vinha adotando há muito tempo com relação, por exemplo, às uniões simultâneas, as linhas paralelas que vinham sendo reconhecidas e eles derrubaram. Então qual é o grande temor? Que agora, com um ministro “terrivelmente evangélico”, haja o risco de perder alguns desses avanços que vinham sendo construídos ao longo dos últimos 20 anos. Todos esses avanços se devem ao Judiciário, aos advogados. Foi o que eu procurei organizar, qualificá-los com cursos, palestras perante a sociedade, capilarizar esse movimento. Ser advogado de gay não quer dizer que a pessoa seja gay, assim como ser advogado criminal não quer dizer que seja criminoso, ou que um tributarista seja sonegador. O trabalho foi necessário até para flexibilizar isso! Então me aposentei e abri o primeiro escritório no Brasil que colocou na placa “direito homoafetivo” – porque as pessoas precisam saber os direitos que têm. Isso provocou muitas decisões no país. O site Direito Homoafetivo até hoje registra essas conquistas, e também mostra as que se vêm ainda conquistando em vários ramos. Eu acho que o papel dos tribunais é muito significativo. O Brasil foi o primeiro país do mundo a assegurar o casamento entre pessoas do mesmo sexo por decisão da justiça e não pela lei, como é em todos os outros países do mundo.

A apresentação do Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero para o Senado Federal foi um marco importante de sua trajetória e para a população trans no Brasil. Como a senhora avalia o andar do processo e o que acredita necessário ser feito para que se consiga implementar o Estatuto?

Eu acho que falta uma mobilização dos movimentos sociais. Acho que eles têm legitimidade para fazer esse movimento junto aos parlamentares. O estatuto foi apresentado no Senado – eu gosto mais do Senado do que da Câmara – e passou pela primeira comissão, mas quando foi para a segunda comissão um senador do Pará, homofóbico declarado, avocou para si a relatoria e literalmente sentou em cima. Agora o estatuto não tramita. Eu falei com ele várias vezes, mas precisa haver um movimento mais intenso. Às vezes tenho a sensação de que esses segmentos estão se sentindo contemplados com as conquistas que já tiveram, mas as conquistas são um pouco vulneráveis. Nós precisamos mais! O estatuto vai além daquilo que se tem. Por exemplo, para assegurar a licença paternidade ao invés de licença maternidade, ou licença natalidade, quando são dois homens ou duas mulheres. Absurdamente, já aconteceu de dar licença paternidade para dois pais homens e em 20 dias eles tiveram que voltar a trabalhar! Acho que uma conquista importante seria assegurar cotas para população trans pela sua extrema vulnerabilidade. Elas são vulneráveis nas universidades, no mercado de trabalho, no setor público – então é importante articular incentivos, inclusive no setor privado, que possam assegurar essa inserção.

Na última década, passamos por diversas regressões conservadoras, como a tentativa da implementação da cura gay, o kit gay e uma violência gritante contra populações LGBTQIA+. Ao mesmo tempo, muites artistes e pensadores trans ou travestis vem ganhando notoriedade na música, na filosofia, na televisão etc…

Até nas casas legislativas têm muitas vereadoras e alguns vereadores que são trans, um número significativo e importante. Confesso que não sei como é que algum gay ou alguma mulher conseguiu votar no Bolsonaro, sabe? Um homem declaradamente machista e declaradamente homofóbico, que preferia ter filho morto a ter um filho gay, e para quem mulher merece ser estuprada – só as feias não merecem. Então, diante disso, o que falta? Representatividade. Nós temos que colocar representantes lá. Nossa representatividade, de mulheres, é muito baixa: só 12%, parece até estar regredindo. Eu acho que mulher tem que votar em mulher, nem que escolha a menos pior! Temos que avançar nesse sentido, sem dúvida nenhuma.

Ainda falta muito para dizer que a gente está no caminho de uma sociedade mais justa para a população trans?

Que é um passo, com certeza. Mas assim que a gente para para pensar, onde encontramos pessoas trans? A gente entra em um banco, não tem nenhum funcionário trans lá dentro. Loja também não tem. Professor trans a gente conta nos dedos, até porque muitos pais não querem que os filhos tenham aula com algum trans. Então onde é que eles estão? Em que gueto? No gueto da prostituição, que garante a sobrevivência. Esse segmento é expulso de casa muito cedo, até porque é muito visível e não aceito. Nas escolas, eles não têm banheiro para fazer xixi e evidentemente há uma evasão escolar muito grande. Qual é a qualificação profissional deles? Onde é que eles vão garantir a sobrevivência? Na prostituição. E por incrível que pareça, elas mesmas dizem que quem mais as procuram são os machões. E isso constrói uma imagem negativa, quando na verdade essa imagem negativa decorre exatamente da posição em que a sociedade coloca essas pessoas. Claro que agora, com a possibilidade de alteração do nome e do registro diretamente no Registro Civil, sem precisar uma ação judicial, facilita. É possível, por exemplo, inserir o nome social no título de eleitor e isso é algo muito significativo. De fato, são avanços. Mas nós precisávamos nos ver livres desses conservadores de plantão e para isso precisamos avançar na educação.

Esse é um ano decisivo para o futuro das populações brasileiras marginalizadas. Como a senhora observa o período eleitoral que temos à frente?

Dos anúncios partidários que vi na televisão, só um falou em reconhecimento de direitos – o do PSol. No restante, continua não entrando na pauta. E nós sabemos que o centrão avança e que ele é muito identificado com essas igrejas conservadoras. Como eles vêm avançando a cada eleição, então creio que as coisas não vão melhorar. Eu acho que nesse momento, a gente precisa lutar é para não perder aqueles avanços que nós já conseguimos. Acho que se ficarmos no zero a zero é capaz de ficar de bom tamanho.

Por fim gostaria de agradecer encarecidamente a sua participação nessa entrevista para o Instituto Racionalidades. Sua luta é de extrema importância e esperamos estar unidos neste front, ajudando a trazer mais visibilidade a esses temas. Para concluir, gostaria de saber se a senhora tem recomendações de leituras, estratégias, pessoas que inspirem e que contribuam – para que possamos dar seguimento a este avanço na luta pela qualidade de vida das populações LGBTQIA+.

Em primeiro lugar eu agradeço e cumprimento vocês por este olhar transversal sobre as coisas. É isso que nós precisamos. Acho que é essa a origem do próprio conceito de humanidade: uma humanidade inclusiva. Acho que essa percepção de vocês é fantástica. A gente tem que aprender a nos livrarmos do preconceito que está dentro de todos nós. Nós fomos criados dentro de um discurso muito homofóbico há gerações. Então, só lutarmos contra isso já é um grande avanço. Filmes, literatura, nos auxiliam muito para conhecer realidades que não são nossas. Não temos direito de desumanizar o outro pelo simples fato dele ser diferente da maioria. As minorias não podem ser inviabilizadas, até porque, de um modo geral, o que é raro sempre tem mais valor. Por exemplo, pedras preciosas valem muito – o cristal, o diamante, o vidro. Qual a diferença entre elas? Então não teria motivo para a gente não aceitar as pessoas do jeito que elas são e aprender um pouco a se colocar no lugar do outro, no sofrimento do outro. Acho isso muito, muito significativo, essa postura de alteridade.

Por Instituto Racionalidades

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