AHH MAR!

Gabrielle Forster

Doutora em Letras – UFSM

Talvez, para esses tempos, nos quais tanto se convoca e comenta a liquidez das relações, a pergunta de Deleuze “como quebrar até mesmo nosso amor para nos tornarmos enfim capazes de amar” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 38) diga mais que qualquer resposta que possamos buscar e inventar. Talvez, seja justamente no cerne da pergunta que se agita a possibilidade de uma linha de fuga criativa para o que está por nascer. Apenas na indagação a possibilidade de criar, talvez.


De todo modo, é inegável que a conjuntura atual é marcada por uma fluidez nas relações nunca antes vista. Com o enfraquecimento da família nuclear, a transitoriedade veloz das trocas no urbano caótico e a oferta constante de atraentes possibilidades existenciais no cenário neoliberal, o fluxo das escolhas entre partir e ficar tornou-se muito mais frenético. Portanto, rompidos os contratos, o que assegura o nosso desejo de com-partilhar?


Se pensamos que, conforme explica Foucault, com a entrada na esfera da biopolítica é a própria vida em sua riqueza de possibilidades que tem sido – cada vez com mais frequência e intensidade – controlada e capturada pelo poder, começamos a entender porque a pergunta inicial de Deleuze nos atinge justamente no ponto do questionamento e qualquer ensaio de resposta seria invalidar a própria questão. Somente ao ousar a pergunta é que podemos vislumbrar uma possibilidade, capaz de vazar os dispositivos de captura, já que o poder, “nessa sua forma mais molecular, incide diretamente sobre as nossas maneiras de perceber, de sentir, de amar, de pensar e até mesmo de criar” (PELBART, 2007, p.57).


Como “o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso” (FOUCAULT, 1981, p.8), sua incidência se dá também sobre o que acreditamos ser todo nosso: os fluxos desejantes. É a partir disso que se repetem padrões tantas vezes já questionados, que se fantasia e interpreta o outro, que se validam relações na troca e se valoriza determinados corpos em detrimento de outros. Sendo assim, é preciso descobrir, dentro das nossas condições históricas de enunciação, como vergar a força de modo a produzir novos modos de subjetivação, ou seja,

[…] a produção, por uma série de atos, de uma instância e de uma capacidade de enunciação que não eram identificáveis num campo de experiência dado, cuja identificação, portanto, caminha a par com a reconfiguração do campo da experiência (RANCIÈRE, 1996, p.47).

Por isso, na vivência do amor fora do estereótipo e do discurso, como bem coloca Barthes, em Fragmentos de um discurso amoroso, é que reside a sua existência possível, já que tudo que pudermos vir a falar sobre ele estará impregnado das palavras alheias, dos códigos e das capturas e, portanto, será ricochetear no muro branco das significações, como diria Deleuze. Nesse reconhecimento reside o caráter ensaístico, fragmentário, poético do referido texto barthesiano, no qual reconhece a insuficiência dos processos reflexivos para dar conta de algo que só se efetua na experiência:

“Que é que eu penso do amor? – Em suma, não penso nada. Bem que eu gostaria de saber o que é, mas estando do lado de dentro, eu o vejo em existência, não em essência. O que quero conhecer (o amor) é exatamente a matéria que uso para falar (o discurso amoroso). A reflexão me é certamente permitida, mas como essa reflexão é logo incluída na sucessão das imagens, ela não se torna nunca reflexividade: excluído da lógica (que supõe linguagens exteriores umas às outras), não posso pretender pensar bem. Do mesmo modo, mesmo que eu discorresse sobre o amor um ano, só poderia esperar pegar o conceito “pelo rabo”: por flashes, fórmulas, surpresas de expressão, dispersos pelo grande escoamento do Imaginário; estou no mau lugar do amor, que é seu lugar iluminado: “O lugar mais sombrio, diz um provérbio chinês, é sempre embaixo da lâmpada” (BARTHES, p.50).

Não há resposta ou fechamento para o discurso amoroso de Barthes, mas convite ao trajeto como única possibilidade não só para o texto, mas também para a experiência do amor além dos discursos, imagens e representações. Nesse sentido, algumas propostas teóricas e literárias podem ampliar nossa compreensão, como a noção de comunidade negativa de autores como Esposito, Agamben, Jean Luc-Nancy e Blanchot. A recorrência de uma ausência-presente em contos de Caio Fernando Abreu ou o erotismo poético do encontro lesboafetivo em Amora (1989), da mexicana Rosamaría Roffiel também podem ser exemplos. Porém, deixemos esses olhares para outro momento, já que a inconclusão do texto talvez aponte mesmo para a essa chance de, quem sabe, ahhh mar!

REFERÊNCIAS:


BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: F. Alves, 1981.


DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998.


FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1981.


RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento. Política e filosofia. São Paulo: Ed. 34, 1996.


PELBART, Peter Pál. Biopolítica. Revista Sala Preta, vol.7, n.7, 2007, p.57-66. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57320 Acesso em 20 de fev de 2022.

Por Instituto Racionalidades

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