Varlei Couto – Doutorando em História/ Unicamp
Como se constrói uma nação? Num texto bastante interessante, John Norvell sugere que o Brasil é uma nação feita na cama. As mais diferentes tentativas de explicar a alma brasileira, empreendida por diferentes pensadores, em diferentes épocas, não conseguiram deixar de lado a importância do ato sexual na construção da civilização brasileira. Foi o caso do aristocrata Paulo Prado, para o qual o prazer sexual, em seu excesso e constância, teria marcado o povo brasileiro com as chagas da tristeza. Porque excessivamente sexuais, fomos condenados a um estado latente de melancolia, que explicaria, na visão de Prado, nossa dificuldade em saltar à modernidade e seguir os fluxos do progresso.
Como um sopro que infla nossas entranhas, o desejo sexual teria esvaziado o brasileiro de toda coragem e força possíveis, transformamo-nos, assim, em uma civilização presa no próprio tempo, condenada a demorar-se sobre si mesma, empacada em sua irracionalidade. O que explica essa condenação ao prazer sexual no interior de um projeto de construção da identidade de um país? Por que acoimar uma prática, que em si mesma, deveria ser tratada e vista como algo positivo, que nos incita a sair de nosso centro e imaginar outras sensações, afetos, possibilidades?
Teria o Brasil sempre condenado o desejo, centrifugado o prazer, flagelado o sexo? À qual Brasil se refere Paulo Prado quando escreve seu Retrato do Brasil? Sobre quais corpos ele diz quando mira seu olhar para a nossa história?
Capitania de Porto Seguro, idos de 1580. Diogo Afonso e Fernão do Campo eram dois rapazes que viveram aqueles primeiros tempos de Brasil. Tempos que seguiam outra lógica, já que marcados pela ociosidade dos recentes instantes da colônia. O destino quis que Fernão viesse a morar na mesma rua onde residia Diogo. Quando tudo parece conspirar, o tempo folga para deixar o destino jogar suas peças. Desse encontro, de súbito nasceu uma amizade. O paraíso, como eram tratadas as terras brasileiras, tem seus segredos, encantos e recantos. Deve ter sido exatamente em um desses recantos que Diogo e Fernão se entregaram aos prazeres, alinhando seus corpos em núpcias de desejo e fogo.
O princípio dessa história foi registrado doze anos depois, em 30 de janeiro de 1592, quando Diogo Afonso, com seus vinte e sete anos e se dizendo cristão-novo, resolveu confessar seus pecados ao visitador do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. Esse episódio chega até nós narrado da seguinte maneira:
“metendo o dito Fernão do Campo seu membro desonesto pelo vaso traseiro dele confessante, cumprindo nele e consumando com ele, por detrás, como se faz um homem com uma mulher por diante, e isso mesmo fez ele confessante também com o mesmo Fernão do Campo, de maneira que alternadamente fizeram o dito pecado nefando, sendo umas vezes agente e outras pacientes, e ainda lhe lembra e se afirma que o dito Fernão do Campo cumpria com ele com polução…”
A partir desta história, simples e cotidiana, de dois rapazes se entregando aos prazeres do sexo, gostaria de propor duas breves interpretações. Como nos mostrou o filósofo Michel Foucault, o ato de confessar o “pecado nefando” é empreendido por um mecanismo que opera por meio da colocação do sexo em discurso. Colocação que se quer exaustiva, extensa mesma nos detalhes, minimalista em exigir que a memória recupere cada gesto, toque, penetrações, roçar dos corpos. A atitude do visitador do Santo Ofício é fetichista. Diz Foucault que “a responsabilidade pela salvação das almas assumida pelo padre-pastor em relação aos crentes-rebanho de ovelhas exige apreender tudo o que se passa no interior de cada crente”.
Ao manejar cada detalhe da confissão de Diogo, a culpabilização do ato acontece em meio a um jogo certamente inevitável de afetos embalados pela narrativa erótica do confessante. Por isso a atitude do visitador é, em primeira instância, marcada pelo fetiche. A força do erótico é sempre instigante. Ela instiga o fluir da imaginação, incitando o corpo a mover-se, convulsionando-o e retirando-o de órbita. Se nesta narrativa o corpo de Diogo torna-se objeto de exame, também o corpo do visitador cristão é envolvido naquela trama de desejo, prazer e carne. Se retomarmos Diogo em sua confissão, veremos que ele é incitado a ir mais fundo em suas memórias:
“E o dito pecado, assim alternadamente, muitas vezes, em diversos tempos e diferentes lugares, ora em casa, ora nos matos, ora em ribeiras cometeram, e nesta amizade e conversação torpe duraram por espaço de um ano pouco mais ou menos, tendo os ditos ajuntamentos consumadamente, de três em três dias, e de dois em dois dias, e de semana em semana, e às vezes em um dia duas vezes.”
A civilização brasileira foi assim sendo constituída nos orifícios do desejo, nos vãos do prazer de corpos que se entrelaçavam mesmo diante da iminência de punição de um Deus cristão que odeia sexo, culpabiliza o prazer e incinera as carnes, já que é em sua epiderme que o erótico floresce. Como bem nos explicou Michel Foucault, é na carne, entendida pelo cristianismo como fonte de perpétua de tentações que levam o indivíduo a “ultrapassar as limitações impostas pela moral corrente”.
É assim, em meio a culpabilização do prazer, que o Brasil, dentro de um imaginário que o explica como paraíso tropical, teve e ainda tem sua identidade moldada por discursos conservadores e reacionários que classificam como pecado a qualquer livre manifestação de amor e de desejo.
Mesmo diante da racionalidade colonial com seu “olhar pornográfico” – lançando mão da expressão da antropóloga feminista Rita Segato –, o Brasil foi e continua sendo constituído no querer dos corpos, no cintilar erótico das carnes cujas peles suplicam pela livre manifestação do prazer. Somos uma nação engendrada nas fissuras do discurso masculino-cristão que apesar de tentar a todo custo bloquear os fluxos do desejo, não cansa de falar de sexo.
O Brasil é o país das múltiplas identidades, paraíso dionisíaco dos prazeres, pântano de amores e de te(n)sões que constituem nossa brasilidade, cheia de pontas soltas e arestas não aparadas, porque constituída seja nas camas, nas moitas e ribeiras, seja nos rincões de mato a dentro ou nas esquinas noturnas de nossas cidades. Nossa brasilidade não nega o amor ou condena a carne, como sempre quis e quer o discurso cristão.
A história do Brasil é repleta de histórias de encontros, de pulsar da sexualidade. Nossa brasilidade encontra na sexualidade a força criativa para contornar as múltiplas violências do olhar colonial pornográfico que ainda hoje maceram e objetificam nossos corpos.
Termino esta breve reflexão sugerindo que se habitamos o paraíso nos trópicos, estamos mais próximos de ser o paraíso dos prazeres e do convite à sexualidade, afinal, como nos alerta Michel Foucault:
“A sexualidade faz parte de nossa conduta. Ela faz parte da liberdade em nosso usufruto deste mundo. A liberdade é algo que nós mesmos criamos — ela é nossa própria criação, ou melhor, ela não é a descoberta de um aspecto secreto de nosso desejo. Nós devemos compreender que, com nossos desejos, por meio deles, instauram-se novas formas de relações, novas formas de amor e novas formas de criação. O sexo não é uma fatalidade; ele é uma possibilidade de aceder a uma vida criativa.”
E criatividade é o que não falta nas brasilidades que povoam o paraíso dos prazeres.
Referências:
Foucault, Michel. Ética, sexualidade, política. Ditos e Escritos V. Rio de Janeiro: Forense Universitária 2012.
_________________. Michel Foucault, uma entrevista: sexo poder e a política da identidade. Verve, Revista do NU-Sol, São Paulo, n. 5, 2004, p. 260.
NORVELL, John. “A brancura desconfortável das camadas médias brasileiras”. In: MAGGIE, Yvonne; REZENDE, Claudia Barcellos. (Orgs.). Raça como retórica : a construção da diferença. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
SEGATO, Rita. Crítica da colonialidade em oito ensaios. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
VAINFAS, Ronaldo. Confissões da Bahia: santo ofício da inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.