Uma Rosa no paraíso ou o Brasil de A Igreja do Diabo

Varlei Couto – Doutorando – UNICAMP

No ano de 1725, aos seis anos de idade, Rosa, africana natural da costa da Mina, chega ao Rio de Janeiro na condição de escravizada. Talvez a travessia do Atlântico, dentro de um navio negreiro, tenha sido uma de suas primeiras piores experiências de vida, para não esquecer, é claro, do espetáculo desesperador que tenha sido a separação da família, ainda na África. No século XVIII, o Brasil já se configurava como um dos principais países escravistas da América. Rosa logo sentiria as consequências disso.


Aos quatorze anos, ainda na cidade do Rio de Janeiro, após ser estuprada inúmeras vezes pelo seu senhor, foi vendida para uma família mineira, estado para onde se muda em 1733, percorrendo a pé os quinhentos quilômetros até Minas Gerais. Lá, Rosa ganha visibilidade, destacando-se em meio aos quase cem mil escravizados daquela capitania. Apesar de viver na prostituição durante os quinze primeiros anos (de 1733 até 1748) em terras mineiras, consegue driblar os horrores cotidianos daquela sociedade extremamente conservadora. No entanto, não foi como prostituta que Rosa fez os holofotes morais curvarem sobre si.


O ano de 1748 marca uma virada em sua subjetividade. Abandonando a vida de prostituta, a mulher que adorava música, dança e perfume de almíscar, resolve trocar as ruas pelos bancos da igreja, convertendo-se ao catolicismo. Conversão voluntária ou cooptação? Fé ou astúcia de um corpo cansado de sofrer pancadas, chicotadas, beliscões? Não é possível afirmar se para Rosa Deus era abrigo ou saída. O fato é que a maneira como ela escolhe adentrar aos caminhos da fé mudaria os rumos de sua vida. Talvez só quisesse ser ouvida, abraçada, resgatada daquele mundo de dor e de desprezo infinitos. Mas como chamar a atenção habitando a condição de escravizada?


Se sua segurança encontrava-se no altar, para chegar até ele, Rosa convoca o Diabo. Logo após sua conversão, e de distribuir aos pobres todo o pouco ouro e vestidos acumulados em sua vida noturna, após este ato simbólico, sentiu-se leve para iniciar as primeiras manifestações diabólicas em seu corpo. Não lhe faltou inventividade. Com o Diabo no corpo, caiu dezenas de vezes ao chão, convulsionada, possuída por forças malignas. Dizia ter visões, afirmava ver a Virgem Maria e conversar com os anjos.


Rosa tornou-se um corpo ainda mais errante, um planeta sem órbita. Jogou com o imprevisível, atingiu o improvável, conseguindo seu próprio anjo da guarda, o padre, também errante, Francisco Gonçalves Lopes, com quem construiu uma amizade singular. Lopes fazia seus exorcismos e a confessava, mas, sobretudo, a protegia. Os dois eram mestres na arte da estratégia para dançar naquela sociedade cristã, cuja melodia era ditada pela Inquisição, sempre em vigília.


Em 1749, na atual cidade de São João Del Rei, numa missa na Igreja Matriz do Pilar, em meio à homilia, Rosa, presença (in)tolerável, resolve chamar a atenção da fina sociedade do Rio das Mortes para si. Mais uma vez, convoca o Diabo. Cai, vibrando frases desconexas, voz entorpecida e incorporada. Pânico e medo tomam a casa de Deus. Assombrados, muitos fiéis saem correndo da igreja. Caos. Foi a gota d’água. Rosa trouxe a desordem naquele espaço, por excelência ordenado e conectado aos céus. Foi presa na cadeia pública, permanecendo ali por um período de oito dias, até ser levada, a pé, para a cidade de Mariana. Alguns dias depois, acorrentada pelo pescoço, foi levada ao pelourinho daquela cidade, onde foi brutalmente açoitada em praça pública. Rosa ficou em carne viva, atravessada pela força da chibata. Tanta dor e sofrimento fez com que perdesse os movimentos do lado direito do corpo.


A mulher que, brincando com o Diabo, soube enfrentar Deus e os homens, aguentou firme a tortura. Dois anos após o episódio do açoite, em 1751, Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, nome que assumiu posteriormente, fugiu para o Rio de Janeiro, onde fundou um convento e, alguns anos depois, foi capturada pela inquisição. Deixo ao leitor o convite para conhecer o final da história dessa mulher que soube encarnar múltiplos corpos ao longo da vida.


Em que medida a trajetória de vida de Rosa Egipcíaca pode contribuir para a produção de uma história a contrapelo da história do Brasil? À época do açoite de Rosa, o Brasil vivia os primeiros anos do Império. Se o colonialismo tinha chegado ao fim com a independência política em 1822, o país continuava (como ainda continua) atravessado pela colonialidade do poder e do ser, sendo engendrado pelas teias da modernidade europeia. Desde os primeiros anos após a independência, era forte a necessidade de construir uma identidade para a nova nação que nascia nos trópicos paradisíacos.


Se desde o século XIX foi latente a vontade de dar identidade ao Brasil, esse processo, arbitrário e político, assumiu formas distintas ao longo do tempo. Estabelecer as características identitárias do país, cristalizando suas raízes mais profundas, atendeu a um projeto de exclusão de todos os sujeitos que, na visão da elite política, masculina e supostamente heterossexual, ameaçavam a ordem do forte imaginário edênico, que desde a colonização, compôs a aquarela de um Brasil paradisíaco e harmonioso.


No processo de construção de nossa identidade nacional, corpos como o de Rosa se tornaram ordinariamente matáveis e descartados numa ordenação política que buscou e insiste em buscar varrer da memória histórica do país outras experiências corporais, distintas maneiras de experienciar a vida, a carne, a sexualidade, os prazeres, para além dos ditames morais-conservadores-cristãos que invadiram os vãos do Brasil.


Destaco, aqui, o conto “A Igreja do Diabo”, de Machado de Assis, publicado em 1884. Nele, cansado de seu papel avulso no mundo, o Diabo resolve fundar uma igreja. Para isso, decide deslocar-se até o céu a fim de ter uma conversa com Deus, deixando-o a par da novidade. O Diabo machadiano é um experiente propagandista. De volta à terra, espalha que em sua igreja todos os pecados seriam transfigurados em virtudes. Nela, tudo seria permitido, o uso dos prazeres, a inveja, a cobiça, a gula, a luxúria. Não havia limites, não haveria peso ou culpa, mas leveza e permissão.


Não cabe resenhar todo este maravilhoso conto, mas sim prestar atenção ao perfil de Diabo construído pelo autor. Machado de Assis molda um Diabo irreverente e criativo. Rompendo com uma tradição cristã que há séculos erigiu uma ideia negativa de Diabo, maligno, temido e perigoso, Machado constrói o demônio como sendo aquele que permite o corte das algemas morais, porque inventivo e destemido. Dos núcleos da terra, o Diabo vem libertar a humanidade dando a ela a possibilidade da experimentação. Voltando a Rosa, percebo-a convocando exatamente esse perfil de Diabo, já que é ele quem lhe permite ser múltipla para deslizar sobre os códigos morais que atravessam seu corpo.


O filósofo francês Michel Foucault, ao se debruçar sobre o pensamento cristão dos primeiros anos, mostra-nos como a invenção do pecado original, pelo padre Tertuliano, produziu um recentramento da ideia do mal. A partir de então, em seu interior a alma seria habitada pelo elemento do mal, convivendo, portanto, com a presença desse outro que o cristianismo conceituou como Diabo. Noutras palavras, como consequência do pecado original a humanidade estaria fadada a conviver com o Diabo no corpo. Quais os desmembramentos desse pensamento que por séculos domina o pensamento ocidental?


Desconfiança e negação de quem se é, anulação, cisão e mortificação do sujeito, que deve passar toda a sua existência negando a si próprio, renunciando ininterruptamente a si mesmo, já que a verdadeira vida começa depois da morte física, já que é plena somente na eternidade.


Machado de Assis ironiza esse imaginário cristão ao reconfigurar a imagem do Diabo. Acredito que é hora de desconstruirmos a história do Brasil, com a ajuda de histórias como as de Rosa, por exemplo e retomando narrativas como as de Machado a fim de pensar um Brasil que seja distante do que os intelectuais masculinos tradicionalizaram. Se as tradições são inventadas historicamente, é possível destruí-las por meio de outras experiências.


Se vivemos num país ameaçador e conservador, que busca diluir suas violências em meio a determinada e declinada imagem de paraíso, acredito ser possível imaginar e acreditar num Brasil como Igreja do Diabo, isto é, mais livre, permissivo, igualitário, justo, menos nocivo e constrangedor. Um Brasil livre da ideia de pecado e de líderes reacionários, que não cansam de se reatualizarem. Mas para isso, é hora de nos demorarmos mais nas diferentes rosas que habitam o paraíso, para que sejamos capazes de propor um Brasil, reafirmo para concluir, de A Igreja do Diabo.


Referências


ALMOND, Philip C. O diabo: uma biografia. Rio de Janeiro: Vozes, 2021.


ASSIS, Machado. “Igreja do Diabo”. In: Todos os romances e contos consagrados. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.


FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV – As confissões da carne. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020.
Do governo dos vivos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014.


MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993.

Por Varlei Couto

Doutorando em História Cultural na Universidade Estadual de Campinas, onde pesquisa a construção do imaginário erótico/sexual no processo de construção da identidade brasileira. Possui mestrado em História também pela UNICAMP (2015), onde defendeu a dissertação “Mariposas da noite, amantes da escuridão: prazer e erotismo na prostituição feminina em Pouso Alegre-MG (1960-1980)”, sob a orientação da Professora Dra. Luzia Margareth Rago. Tem experiência na área de teoria da História e historiografia brasileira, com ênfase em história das mulheres e de gênero, atuando principalmente nos seguintes temas: Michel Foucault, prostituição, erotismo, sexualidade, identidade e prazer.

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