Por José Luís Ferraro – Doutor em Educação, Bolsista Produtividade do CNPq e Professor Universitário.
Em 2022, com a derrota do Bolsonarismo nas urnas, vislumbrar um outro futuro chegou a ser possível. Com alguma esperança, a esquerda brasileira e os demais integrantes do campo progressista – seja lá o que isso signifique – chegaram a vislumbrar possibilidades de avanços em diferentes áreas que haviam se tornado alvo do reacionarismo fascista de uma tanatopolítica que vigorou oficialmente no país durante quatro anos.
No entanto, desde o começo do governo Lula 3, se já não bastasse a minoria no Congresso Nacional – o que faz com que o governo venha enfrentado uma série de derrotas nas casas legislativas – somado à ascensão da extrema-direita no mundo, o cenário político brasileiro não tem permitido o avanço de pautas humanitárias. Segurança, saúde e educação, por exemplo, têm sido menos problema de uma ordem neoliberal vigente que materializou uma política de austeridade como o teto de gastos, para se tornarem mais objeto de um debate atravessado pelo ódio daqueles que não podem mais ser chamados de conservadores, mas de (anti)políticos; representantes de um neofascismo que sempre andou de mãos dadas com as instituições no interior da estrutura de uma democracia liberal falida. A democracia representativa nunca atendeu – e nem nunca atenderá – os anseios de uma sociedade sub-representada.
Há, assim, desconexão entre a população (enquanto agente demográfico) e o povo (enquanto agente político), considerando a realidade na qual às leis são feitas – sempre para poucos e com vistas à manutenção dos privilégios de classe. É isso que torna a democracia liberal essencialmente burguesa e que fez Karl Marx referir-se a ela como a ditadura da burguesia.
Se a população tem sido, desde a organização dos Estados Modernos, o grande alvo da biopolítica, como afirmou Michel Foucault, o povo – na análise política de Ernesto Laclau – emerge como uma construção discursiva resultante da articulação de demandas ou anseios comuns que acabam por defini-lo no instante em que essas são reivindicadas.
O povo se configura, assim, como um significante vazio produzido pelo conjunto dessas reivindicações em um dado momento histórico – em que pese, e de forma concomitante, ele seja definido pelo próprio governante que escolhe para quem vai governar. Leia-se: quais demandas decidirá atender, pos é sempre uma parcela da população que se converte em povo que, nesse sentido, pode assumir diferentes identidades, de acordo com as demandas na ordem do dia e com as decisões políticas que o beneficiam.
É esse povo que se constitui a partir de uma relação de oposição com aqueles (outros) indivíduos que demandam coisas contrárias e que, por extensão não as têm atendidas. Nesses termos, a ideia de povo enquanto agente político está associada à existência de uma alteridade composta, geralmente, por indivíduos que acabam sendo compreendidos como inimigos sociais. O povo, para Laclau, é produto desse antagonismo.
Separar população e povo, significa investir em uma importante distinção, afinal, o neofascismo instalado no Congresso Nacional, uma vez comprometido com seus próprios interesses, tem desconsiderado a primeira – o que implica a não utilização de dados e informações demográficos úteis ao seu próprio governo – em detrimento do segundo, configurado como agente político coletivo e propositalmente pensado como um grupo que deseja o mesmo que a maioria legislativa têm a oferecer; mas que, na verdade, não corresponde aos anseios e, tampouco, à realidade da sociedade brasileira.
Sob essa realidade de crise da representatividade da democracia liberal, se descortina o que Laclau se referiu como sendo populismo de direita que, como todo populismo, também luta pela hegemonia e se orienta pela tentativa de unificação de demandas supostamente populares – tidas como incontornáveis ou urgentes – sob a orientação de uma ordem política que prevalece. Assim, é esse populismo que tem servido à articulação das pautas de uma agenda de retrocessos que, até então, permaneciam propositalmente marginalizadas no debate político brasileiro.
Cabe, a partir disso, uma referência ao trabalho de Antonio Negri e Michael Hardt, ao cunharem o termo multidão, que também opera como agente político, mas em oposição à ideia de povo. Enquanto, segundo eles, o povo se produziria internamente de forma homogênea, a partir da minimização das diferenças; a multidão valoriza a diversidade e a multiplicidade. Logo, diferente do povo, dependente de ações estatais e organizado de forma hierárquica, a multidão se organiza de forma horizontal e independente, sendo capaz de criar formas de vida reconstruídas pelas constantes lutas que escolhe travar. Multidão, assim, é uma forma de resistência que se organiza por fora das estruturas tradicionais do poder estatal.
Na última semana foi votado na Câmara de Deputados o regime de urgência do Projeto de Lei nº 1904/2024, que equipara a interrupção da gravidez após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio. A nova pena, estabelecida entre 6 e 20 anos de prisão, para as mulheres que optem pela interrupção é igualmente estendida para as pessoas que as ajudem a realizar o procedimento.
O fato é que, sob a lógica dessa realidade, a população enquanto agente demográfico, nada pode fazer a respeito. No entanto, os dados estatísticos por ela oferecidos sobre a realidade das mulheres cotidianamente violentadas no país e que decidem pela interrupção de suas gestações, bem como o número de óbitos decorrentes de procedimentos de interrupção, ou à classe social que pertencem a maioria dessas mulheres estão sendo desconsiderados. Mas, e o povo, o que poderia fazer? Nesse caso, a resposta é: depende. Não esqueçamos que há um povo que se sente representado e seguro em caso de ratificação dessa aprovação e que não fará nada para que essa realidade se modifique.
Mas, ainda há que se perguntar: e a multidão? Bom, essa, de maneira organizada tem o dever de oferecer a resistência necessária para que o Projeto de Lei seja derrotado ainda na própria Câmara dos Deputados e não chegue ao Senado Federal. E na hipótese de ele seguir sua tramitação e ser aprovado, será essa multidão que terá o dever pressionar o Poder Executivo, para que o Presidente da República exerça o seu direito de veto.
O fato é que se alguém pode frear o avanço da extrema-direita, esse alguém é a multidão enquanto agente político. Sem a sua organização em prol da reafirmação dos direitos humanos e tantos outros individuais e coletivos que cotidianamente (e de maneira feroz) são atacados pela virulência da barbárie que rege o modus operandi do fascismo em Brasília, continuaremos vivendo essa realidade distópica que tem nos permitido cada vez menos sonhar com um futuro diferente que não virá.