Margareth Rago: “Se você renuncia a si mesma, você morre – então é preciso criar saídas”

Por Clarissa Henning

Aos 73 anos, a historiadora e filósofa Margareth Rago esbanja bom-humor e vontade de vida. Ela conversou com a gente sobre os feminismos, e sobre as conquistas e capturas que ameaçam a força dessa multiplicidade.


Testemunha das agitadas décadas de 70 e 80, a jovem Margareth participou das mudanças culturais e sociais que serviram de pano de fundo para o fortalecimento do movimento feminista no país. Hoje, com vários livros publicados, é uma das mais conhecidas pesquisadoras brasileiras dos estudos de gênero – e uma das poucas a embasá-los na filosofia da diferença.


Nós também conversamos sobre o impacto da obra de Michel Foucault em sua vida acadêmica e pessoal. O filósofo marcou sua atuação como uma intelectual específica que aplica o cuidado de si e do outro na própria vida.


Mestre e doutora em História pela Unicamp, Margareth foi professora do departamento de História na mesma universidade. Ela se aposentou em 2015, mas manteve o vínculo como professora colaboradora.


Um dado interessante dos bastidores dessa entrevista foi a dificuldade para achar uma foto em que Margareth apareça sozinha em suas redes sociais. É um vestígio do seu compromisso de lançar pontes entre mundos diferentes. Para ela, o fundamental é partilhar nossas diferenças de modo a perceber o que nos une – e lapidar a nós mesmos a partir da nossa relação com os outros.

Instituto Racionalidades: Quando e por que a senhora passou a se interessar pelo feminismo? A adoção como objeto de pesquisa aconteceu antes ou depois da sua participação nos grupos de mulheres?


Margareth Rago: Eu sou de uma geração que foi tendo contato com experiências feministas, com olhares feministas, com interpretações feministas, antes de aparecer o movimento estruturado e organizado. Entrei na USP em 67 e me formei em 70, em História – depois fiz Filosofia em 76. Mas essa virada foi no contato com o marxismo, com a revolução sexual e cultural, quando o feminismo explodiu. Ninguém falava em feminismo naquela época. A gente lia Ângela Davis, mas pensava na filósofa negra que estava na Alemanha criticando Marcuse. Esse vocabulário ainda não existia, ele é da segunda metade da década de 70. Foucault ainda não tinha chegado para nós e nem os contatos com grupos feministas – isso vai acontecer no final de 70, início de 80 – mas as experiências estavam acontecendo. Eu sou da geração que disse “Olha, lamento, mas não vou casar, não é isso o que eu quero e não sei se quero ter filhos”. Tive filhos só aos 37 anos. As coisas foram acontecendo nas vivências, nas experiências, mais do que no discurso baseado em teorias… isso foi depois. Acho que a gente foi precisando de explicações. Então meu interesse pelas questões feministas é anterior ao encontro com os grupos porque eles ainda não existiam. Os grupos começaram quando eu fiz faculdade pela segunda vez, na Filosofia. Mas o encontro mesmo com grupos feministas se dá bem depois para mim, na década de 90. Em 1990, meio por acaso, fui substituir uma professora que participaria do 1º encontro de gênero no Brasil. Obviamente eu já tinha feito um doutorado em história da prostituição, mas quando estudei os anarquistas no mestrado – em 1980 – fiquei muito espantada ao descobrir as mulheres na imprensa operária. Não tinha ideia de que o proletariado era feminino, pensava que era feito de homens e imigrantes. As primeiras fábricas são fábricas de tecido, de vela, de fósforo, e são empregadas meninas, jovens, muitas mulheres. Fui ficando em choque ao perceber que o proletariado era “a proletariada”. No Brasil, em 1904, houve a lista dos indesejáveis – produzida no contexto que gerou a lei Adolfo Gordo, que mandava de volta os imigrantes anarquistas ou socialistas para seus países de origem. Quando a pesquisa me levou a olhar essa lista, li nomes como Angelina, de 20 anos, e Maria Isabel, de 16 anos… Fiquei muito impressionada e me dei conta de que precisava fazer um capítulo sobre as mulheres. Ser mulher em uma fábrica, ser operária, não era o mesmo que ser um operário porque um operário não é assediado, não é estuprado. Os anarquistas falam muito em amor livre – o que também me deixou chocada porque eu achei que amor livre era um tema da minha geração, eu tinha 20 anos em 1970. Mas eu descobri que era de um século e meio antes! A pesquisa foi incrível, porque quando eu estava no Rio de Janeiro estudando o amor livre na Biblioteca Nacional eu puxei o fichário e lá estava escrito: “amor livre, vide: prostituição”. Então fui conferir “prostituição” e vieram as teses médicas. Nessa época já tinha Foucault na minha vida, falando do discurso médico e da teoria da degenerescência. As coisas foram casando e na Unicamp tive muito espaço para fazer pesquisas nesses temas no mestrado e no doutorado. Meu encontro com o feminismo organizado foi na década de 90, mas aí eu já tinha uma produção feminista. Lia as autoras e historiadoras – a Maria Odila, por exemplo, que tinha publicado Cotidiano e Poder, a Miriam Moreira Leite, que publicou uma biografia da Maria Lacerda de Moura. As coisas foram me levando e eu também estava querendo me entender, porque era aquela pessoa que não queria casar, não queria ter filhos, não queria ser mulher daquele jeito… Claro, nessa época apareceu a Rita Lee, a Janis Joplin – foram aparecendo referências que também chutavam o balde e a gente foi se aproximando delas. Mas não tinha essa teorização. Da década de 70 para cá, foi uma época de muitas explosões: revolução sexual, revolução cultural, movimento gay, movimento negro, os indígenas também começaram a aparecer mais… Crise de tudo que é lado. Foi uma mudança de 180 graus, sem dúvida alguma, e eu tinha 20 anos e estava na USP. Peguei esse movimento em cheio! Era uma crítica muito radical.

À medida que um grupo cresce, as diferenças começam a aparecer e aí cada um quer fortalecer seu ponto de vista, sua necessidade, suas reivindicações – o que é legítimo e faz parte do crescimento.

IR: Por que feminismos, no plural?

MR: Feminismos no plural porque sem dúvida alguma os feminismos cresceram. O que era “o” feminismo em um primeiro momento – um negócio embrionário, uma pessoa aqui e outra ali, uma imprensa alternativa pequena – de repente bombou. A partir da década de 80 a coisa cresceu de uma maneira muito impressionante. A história das mulheres na década de 80, os estudos de gênero na década de 90 – e alguns grupos achavam que deveriam ficar os estudos de mulheres e não os estudos de gênero… Então começaram os conflitos de perspectivas, como hoje tem o feminismo negro questionando o feminismo branco, o feminismo indígena questionando o feminismo negro e o branco, e logo possivelmente aparecerão outros tipos. À medida que um grupo cresce, as diferenças começam a aparecer e aí cada um quer fortalecer seu ponto de vista, sua necessidade, suas reivindicações – o que é legítimo e faz parte do crescimento. Por isso “feminismos”, no plural, devido ao crescimento e à diversificação, e para haver espaço para os diferentes no mesmo contexto de luta das mulheres e da sua posição nesse mundo machista, misógino, falocêntrico, capitalista, desigual, violento.

IR: Nesse tempo, quais mudanças a senhora observou na forma das próprias mulheres perceberem e abordarem os problemas?

MR: O mundo mudou profundamente nesses 50 anos. Em 69 eu perdi a minha carteira de identidade e alguém me devolveu aquele documento em 2018 – olha que significativo. A pessoa me achou no Facebook, mandou a foto e perguntou se era eu. O avô tinha morrido e a família encontrou o meu RG e a minha carteirinha da USP em uma caixa. Ele achou no bairro do Paraíso, onde eu morava na época, e guardou. Então a neta me procurou e eu fui buscar. A sensação é a de que fui dormir em 69 – quando a gente não devia se aproximar dos homossexuais e das lésbicas, porque eles comiam criancinhas igual aos comunistas – e acordei num mundo em que tinha nascido a palavra “gay” e se falava em despatologização. Foi uma mudança de 180 graus da noite para o dia! Os casais começaram a se separar, o casamento deixou de ser monogâmico. O Brasil teve contato com o mundo e nos Estados Unidos já havia o Civil Rights Movement desde a década de 60. Lembro que estava na USP e a gente assistia filmes sobre os Black Panters, os Panteras Negras, e era maravilhoso. Estávamos criticando o partidão, que era muito burguês e quadrado, e sabíamos que aqueles grupos políticos de esquerda iam cair porque uma nova esquerda surgia, inclusive com a questão do feminismo. Nesses 50 anos a mudança foi muito grande e hoje as nossas filhas e netas são outras pessoas – elas fazem parte do pós-feminismo.

No feminismo brasileiro não existe muita discussão sobre a elaboração da subjetividade. Se discute economia feminista, o salário baixo das mulheres, a falta de espaço nas empresas, mas não a produção da subjetividade.

IR: E quanto aos homens? O que o feminismo deslocou no mundo masculino?

MR: Acho que os homens de 40 anos ou 50 anos não são mais os da minha geração. É muito diferente em todos os sentidos. Eu tenho 73 anos, e é claro que existem contemporâneos meus que acompanharam a mudança, mas os homens são mais conservadores do que as mulheres, se cuidam menos, se olham menos. Mulheres vão mais à terapia, trabalham a própria subjetividade porque, se você se elabora, você se transforma. Mas os homens que nasceram no pós-feminismo são de outra geração – hoje os jovens vão morar juntos para ver se têm condições de casar. Até 1969 você tinha que casar virgem para ser uma pessoa respeitável. Se para os homens a cobrança foi sempre a questão do trabalho – tanto que o oposto do homem normal é o vagabundo –, para as mulheres a questão é a sexualidade. O oposto da mulher normal não é a vagabunda, mas a puta. Hoje eu fico chocada em pensar que o nosso mundo exigiu das mulheres serem assexuadas. Elas deveriam servir e não ter tesão: era isso que diziam as teses médicas que eu achei no Rio de Janeiro, que a mulher nasceu mesmo com vontade de ter filhos e que sua essência era a maternidade. Portanto, o desejo sexual, na mulher, era canalizado para ter filhos e por isso ela tem o quadril mais largo que o dos homens e perde neurônios. Essa é a explicação científica das teorias de Santo Agostinho. Lembro de ouvir, quando eu era criança, que as mulheres deviam transar com os maridos na medida da exigência deles porque se não eles enlouqueciam. Era necessário até para que eles pudessem trabalhar e por isso a zona da prostituição não era um espaço para as mulheres, mas para os homens se saciarem. As mulheres estigmatizadas que estão lá, estão para trabalhar, para comprar bolachas para os filhos. No fim das contas, elas serviam no lar e no bordel. É uma sociedade louca porque sexualiza as mulheres ao mesmo tempo em que retira delas qualquer possibilidade de experiência sexual. Mas isso explodiu e eu acho que as novas gerações não vivem assim. Se eu falar de virgindade para uma moça de 20 anos, ela vai dar risada – a não ser que ela seja parente da ex-ministra Damares Alves. A liberdade da juventude hoje é muito impressionante. É outra relação com o corpo e com a sexualidade, mesmo que não haja muita teorização. No feminismo brasileiro não existe muita discussão sobre a elaboração da subjetividade. Se discute economia feminista, o salário baixo das mulheres, a falta de espaço nas empresas, mas não a produção da subjetividade. Isso acontece no exterior, mas não no Brasil. Por mais que o feminismo negro critique o feminismo branco, não dá para uma feminista negra abrir mão de ler Heloísa Buarque de Hollanda. Há diferenças, contudo há também um solo aberto que precisa ser pavimentado, plantado, florestado. Mas nossos feminismos são marcadamente de inspiração marxista. Quando o feminismo nasce na segunda metade da década de 70 ainda não existia uma elaboração teórica da filosofia da diferença mais “didatizada”. Exceto os professores da Filosofia, como o Renato Janine Ribeiro, ninguém estava entendendo nada. “Como assim, discurso é fundamental?” – para nós, discurso era vento. Aí vem um cara chamado Foucault e diz que discurso é materialidade. Mas o que isso queria dizer? Como assim? O discurso produz a realidade? Todo mundo dizia que ele era idealista. História da Sexualidade IV saiu em 2018 na França e, aqui, em 2020, mas ele morreu em 1984! No início, as ex-presas políticas que se reuniam com as jovens – como Maria Lygia Quartim de Moraes e Amelinha Teles – eram de formação marxista. Era esse o pensamento crítico daquele momento e lembro que as pessoas falavam em trocar luta de classes por luta de sexos. É no final dos 80 e início dos 90 que a questão do gênero chega e é trabalhada em núcleos e cursos porque era preciso pensar nas relações, afinal a mulher não é uma ilha isolada. Ela vive relacionalmente com o pai, o irmão, o marido, o amigo… É uma virada da filosofia do sujeito, que dominava, para a filosofia da diferença. Foucault, Deleuze, Rancière, Lyotard, todos de inspiração nietzschiana. Até então, você não estudava Nietzsche na universidade, mas Hegel. Em 1970 Nietzsche era considerado de direita, nazista – embora ele tivesse vivido no século XIX (risos). Então são duas tradições do pensamento crítico, mas uma chegou bem depois da outra, e o feminismo ainda é de inspiração acentuadamente marxista, principalmente o latino-americano. Faz sentido também, porque a questão econômica é mesmo impressionante. Eu queria ser militante revolucionária e queria ficar feia – porque eu era classe média paulistana, branca, bonitinha, de olhos azuis, ou seja, tudo que você não queria ser. Você tinha que se proletarizar, não comer pizza nem hambúrguer! Claro que fui parar no psiquiatra (risos). Quando veio a pandemia, pensei “é a segunda vez que o mundo acaba” – a primeira foi em 71, porque você precisa decidir o que quer, se morre ou continua. Se continua, precisa dizer sim para o mundo e aprender a conviver com as pessoas. E agora foi outro corte, inesperado, radical, de isolamento e de ter que olhar para trás. Nós estamos falando do passado o tempo todo, fazendo balanços do país, do mundo, de nós mesmos. A mudança é de 180 graus – em que pesem as continuidades.

Os gregos pensam que criar um cidadão não é criar um indivíduo disciplinado, mas inteligente e ético. Artes da existência, estetizar a própria vida e não só as coisas – a sua própria vida. Ser uma pessoa equilibrada, temperante, generosa, amiga. E por quê a gente não estudou isso no colégio? Porque a gente estudou que devia calar a boca e obedecer.

IR: O que explica o discurso antifeminista em mulheres?

MR: É inacreditável. Nós todas, da minha geração, acreditamos que a gente subia degraus, conquistava patamares, mas não imaginávamos que os degraus iam afundar e voltar à estaca zero! Há pouco tempo encontrei um texto do Foucault de 1977 em que ele diz que nós perdemos todas as referências, voltamos para o ano de 1830. E eu pensei que a gente havia voltado para 1940, mas ele aponta para mais de um século antes disso! Por outro lado, ele diz que não é pessimista porque voltando à estaca zero nós podemos recomeçar – embora precisemos inventar outros modos de existir. Ele percebeu isso em 77, também porque a Europa era diferente do Brasil. Lá eles estavam vivendo a introdução do neoliberalismo e aqui era a redemocratização – década de 80, 90, 2000. Aí veio o PT, o governo Lula, que foi o maior presidente que esse país já teve. E hoje você olha e pensa: “Por quê jogar fora o que nós temos de melhor?”. E você começa a perceber que é muito pior do que você pensa. Por quê a tradição anarquista foi vista como bagunceira, sendo que os anarquistas propunham a autogestão da produção? Nos 3 anos da Revolução Espanhola eles coletivizaram as terras e as fábricas, transformaram os hotéis de luxo em refeitórios, fizeram o transporte público gratuito e a reforma na Educação, os médicos anarquistas fizeram o SUS. A direita se articulou e destruiu tudo. Hoje a gente estuda a Guerra Civil Espanhola, mas não a Revolução. Fui para a Espanha pesquisar, porque descobri o grupo Mujeres Libres, da Revolução Espanhola. Elas criaram um grupo de quase 30 mil mulheres com cursos de capacitação para as operárias e liberatórios de la prostitución. Fiquei muito impressionada com tudo isso. Mas o mundo jogou fora o anarquismo e fez o mesmo com a tradição grega. Precisa Foucault escrever O uso dos prazeres e O cuidado de si para falar dos gregos. Os gregos pensam que criar um cidadão não é criar um indivíduo disciplinado, mas inteligente e ético. Artes da existência, estetizar a própria vida e não só as coisas – a sua própria vida. Ser uma pessoa equilibrada, temperante, generosa, amiga. Por quê e a gente não estudou isso no colégio? Porque a gente estudou que devia calar a boca e obedecer. Ser um corpo dócil. O impacto do cristianismo não é pouca coisa e as pessoas odeiam que se faça essa crítica. O cristianismo moldou o nosso imaginário de uma forma muito assustadora, tanto que o nosso tempo é cristão: nós estamos no século 21 de um mundo que começou no século 1 – antes disso o mundo não existia, viu? Joga no lixo. Descobri um conto do Machado de Assis chamado Adão e Eva, maravilhoso, em que ele tira um sarro dessa narrativa do pecado original. A subjetividade é uma questão fundamental, porque nossa cabeça e nosso corpo foram moldados por uma interpretação conservadora, reacionária e misógina. Se você não tiver uma esquerda, um anarquismo e um feminismo fortes, capazes de fazer um contradiscurso e que não fiquem se digladiando… A direita é articulada e tem grana, enquanto a esquerda fica disputando quem vai ser o feminismo indígena, o feminismo branco, o feminismo negro.

IR: A senhora liga o processo de urbanização – e as sociabilidades que ele trouxe – com a produção de novas subjetividades femininas. Que subjetividades são essas?

MR: Minha dissertação de mestrado é “Do cabaré ao lar”, pensando na urbanização, na utopia da cidade disciplinar. O processo de urbanização de São Paulo visa a construção de uma cidade higiênica – tanto que o bairro dos ricos se chama “Higienópolis”, literalmente a cidade da higiene. O projeto arquitetônico da urbanização é criar uma cidade em que você coloca ricos e pobres, brancos e negros, separados. O Estado definia onde seria a zona da prostituição, em que bairros. Depois mudava o governo e o espaço se deslocava – mas sempre foi definido onde pode aparecer a miséria e onde não pode. O modelo de desenvolvimento urbano industrial capitalista, desde o século XIX na Europa e na virada do século XX no Brasil, produz cidades muito definidas por relações de poder. É a arquitetura do poder mesmo, como diz Foucault. Se fala em liberdade, mas os próprios espaços são definidos de tal maneira que impossibilitam encontros. Muito antes da pandemia as crianças brancas da classe média não convivem com as crianças negras pobres da periferia. Onde essas pessoas acabam se conhecendo é nas novelas da televisão, filmes ou revistas. Quando se encontram só pode dar violência porque as pessoas não se conhecem. Quando olham para mim, uma mulher branquinha e de olhos azuis, o estereótipo que eles têm na cabeça em geral não se encaixa comigo. Se você tem uma cidade tão fragmentada que inviabiliza os encontros, você aprofunda as formas racistas, fascistas e misóginas de relações. São espaços hierarquizados. O buraco é sempre muito mais em baixo porque essas cidades não nasceram espontaneamente: são projetos de elites – arquitetos, prefeitos, governadores. Quem banca são capitalistas e empresários. Aprendi isso com Michel Foucault, quando ele faz uma analítica do poder e mostra que ela assume vários tipos. Em Maio de 68 o lema era “A Imaginação no Poder” e hoje é “A Imaginação no Poder pelo Mercado”. Você tem que ser empreendedor, empresário de si mesmo, fazer o seu capital humano render – inclusive as mulheres, porque elas são muito criativas e é bom que não haja nem estupro e nem assédio para que produzam mais e melhor para o mercado. A captura da subjetividade é de uma violência assustadora. Essa é a grande ameaça, é o grande desafio que os feminismos enfrentam. Entre os feminismos estarem lutando pela autonomia feminina e serem capturados pelo discurso neoliberal de investir no seu capital humano e ser empresária… Não é ser uma empresária que tem uma empresa, é ser empresária de si mesma, fazer a sua renda, você ser produtiva e se capitalizar. Gary Becker, que é um ideólogo do neoliberalismo, é autor do livro Teoria do Capital Humano, foi prêmio Nobel de Economia em 1992 e morreu em 2014. Ele diz que você tem que pensar na formação do capital humano desde cedo. Portanto, se quer ter filhos, pense bem com quem vai casar. É melhor que seja mais rico, mais bonito, mais alto e mais inteligente para que o filho já nasça com um capital humano empoderado. É muito assustador, a briga é muito grande, e está faltando uma articulação das esquerdas. Eu penso o feminismo como um movimento de esquerdas – para mim, movimento feminista de direita não existe. O capitalismo é misógino, racista, produz desigualdades sociais, étnicas, raciais e de gênero. Não existe feminismo de direita assim como não pode existir uma ditadura democrática.

Com as redes, as pessoas não têm um tempo de elaboração intelectual, emotiva, subjetiva, que é tão necessário. Então é outra mudança de 180 graus, mas para pior porque te tira o chão.

IR: Como essas subjetividades se prolongam no mundo das redes sociais? Que capturas emergem aí? E, por outro lado, como as redes potencializam a subversão das mulheres?

São dois aspectos possíveis. Uma potencialização, sem dúvida alguma, porque a articulação que é feita pelas redes sociais é muito impressionante. Nesse período da pandemia nós nos conectamos com o mundo e com feministas de várias nacionalidades. Por outro lado, há essa ameaça que vai além das redes. A juventude está chegando muito sem tradição, muito zerada. Os jovens não sabem quem é Machado de Assis, Nelson Gonçalves, Lima Barreto. É um desconhecimento do passado e perda de referências. Com as redes, as pessoas não têm um tempo de elaboração intelectual, emotiva, subjetiva, que é tão necessário. Então é outra mudança de 180 graus, mas para pior porque te tira o chão. De repente você tem uma menina nas redes que se acha super feminista, mas com um discurso neoliberal e nem percebe que está embarcando no modelo de beleza que está sendo vendido e fazendo poses do tipo “eu mais eu”. Élisabeth Roudinesco escreveu um livro chamado O eu soberano em português, mas o original em francês chama Soi-mème comme um roi, ou seja, si mesmo como rei. Não tem nada de eu soberano, é o eu mais eu. A pessoa tira foto só dela. Se vai em uma exposição, tira uma foto dela olhando o quadro, não do quadro em si. É uma subjetivação egoica em que você não estabelece relação. Antigamente existia uma palavra que se chamava “semancol”… hoje, você entra no metrô e está todo mundo com a cabeça no celular. Se tiver uma pessoa despencando na frente das que estão sentadas, ninguém vê. Você presencia essas cenas todos os dias. Não tem um olhar para o outro, e se olha não enxerga nada. Da geração da minha avó para a da minha mãe e para a minha, houve uma perda. Minha avó, uma húngara camponesa que morava no mato lá no Paraná, tinha as antenas a mil! Fogão a lenha, não tinha gás, não tinha luz elétrica, era lampião… mas as antenas eram impressionantes. A capacidade de perceber o contexto, de perceber o outro, de perceber os perigos. A urbanização te faz perder isso porque você é fragmentado em múltiplas solicitações. Você dirige o carro com um olho no espelho e outro no sinal, conversa com a pessoa ao lado e daqui a pouco o celular toca. Essa fragmentação implica em perdas na sua capacidade de “sacação”. Os orientais sabem disso muito bem, é outra forma de viver o tempo. O Walter Benjamin discutiu essa fragmentação em alguns temas sobre o Baudelaire. Por outro lado, você também vê resistências e formas de contestação novas, como a Marcha das Vadias – e não dá para saber o que mais vem por aí. Então nós apontamos as perdas, a decadência, a fragmentação, mas você também tem uma juventude muito inteligente, eles têm um chip diferente. Veja só as tecnologias – o que é difícil para mim é facílimo para eles. Intelectualmente, tem gente brilhante. Na música, no cinema… Sinto muitos contrastes: em um momento são perdas, em outros estou perplexa com a alta qualidade de coisas que vejo. Fui na Ocupação 9 de julho e fiquei impressionada, tanto com a comida quanto com as apresentações indígenas e os livros da editora N-1 que estavam sendo vendidos. O espaço, as pinturas nas paredes… Então tem muita coisa ruim, mas também tem muita coisa boa. Como vai ser o futuro eu não sei.

IR: Quando se fala em violência doméstica, o imaginário logo desenha a imagem de um tapa – uma violência mais crua e mais visível. Mas, uma das apresentadoras do podcast Mamilos, Juliana Wallauer, afirmou que a melhor representação mental da violência doméstica não é o tapa, mas o cerco. De acordo com ela, destacar essa estratégia mostra de modo mais preciso e mais respeitoso porque uma mulher permanece em uma relação abusiva. A lógica do cerco aponta para uma violência insidiosa e por isso ressalta que ela é bem mais comum do que parece. Como a senhora avalia essa ideia? Ela é popular dentro do movimento?

MR: Por isso que a ideia da subjetividade é fundamental, mas o feminismo não fala nisso. Antes de te matar, o homem já te chamou de feia, gorda, burra, já apontou defeitos no seu corpo, na sua comida. A gente tem que ter um pitbull na bolsa. Sou muito aberta nas minhas relações, mas em relação amorosa meu pavio é curto. Claro que já estive algumas vezes no liquidificador, mas comigo a violência doméstica nem começa. Berrou comigo a porta da casa está ali, acabou. Só fiquei 10 anos casada e com uma pessoa 8 anos mais nova do que eu, e ele foi sempre um cara muito respeitoso. Mas a violência sempre tem um começo discreto. Você fica quieta e aquilo aumenta. E você não reage porque não está se cuidando, no sentido dos gregos, de Foucault. O cuidado de si, de se respeitar e não renunciar a si como quer o cristianismo. Em inglês, abnegado é selfless, ou seja, sem eu. A mulher deve ser abnegada e, portanto, deve renunciar a si mesma. Não gostar do que você gosta, não ter tesão pelo que você tem, não comer o que você quer. Isso faz você se olhar como uma bruxa, uma idiota, uma imbecil – então pode me bater e pode me matar. É o que o cristianismo promove, mas se você falar para uma pessoa cristã corre o risco dela te bater. Eventualmente os valores cristãos ligados à renúncia de si aparecem no movimento feminista – mas é uma captura e também uma regressão.

Difícil é se conectar, não reforçar as caixas – nelas nós já estamos. O neoliberalismo acabou com a gente, porque valoriza esse indivíduo cada vez mais ilhado em nome da liberdade.

IR: Como a noção de identidade e de lugar de fala funciona no movimento feminista?

MR: De várias maneiras. Vejo alguns grupos numa posição completamente retrógrada. A filosofia da diferença – Michel Foucault, Gilles Deleuze, Judith Butler, Wendy Brown – fez a crítica da identidade. A noção de identidade nasceu no século 19, com a polícia querendo identificar o indivíduo na massa. Quando a cidade era pequena não havia o problema do indivíduo, o grupo era mais importante do que o indivíduo. Com a ascensão da burguesia, do proletariado e da cidade grande, nasce a questão do indivíduo e das massas, de identificar quem é quem. Daí a carteira de identidade como um instrumento policial. Um bom livro sobre isso é História do rosto, de Claudine Haroche, e também O declínio do homem público, de Richard Sennett. Foucault mostra que a identidade tem a ver com uma tecnologia de poder que ilha o indivíduo: branco fala com branco, preto fala com preto e assim por diante. Você segmenta todo mundo e evita os encontros – porque a articulação nasce do encontro. Como dizia Hanna Arendt em A condição humana, o indivíduo ilhado é frágil. Os gregos falaram que o sábio é o oposto do estulto, aquele que vai com o vento. Por isso eles ensinavam o cuidado de si, para evitar ser estulto e não ser dissociado da própria vontade. Manter esses padrões de isolamento é muito assustador porque não se reflete sobre essas questões. Eu entendo que os indígenas estão chegando e precisam falar, porque eles estão construindo um espaço – mas eles não têm essa leitura identitária, embora as capturas também aconteçam. Conheço pessoas que queriam fazer teses sobre os indígenas e não conseguiram. Se quem não é indígena não pode estudar sobre os indígenas, se quem não é negro não pode estudar sobre os negros, eu não posso estudar a história dos gregos porque não sou grega. Entendo que os homens não têm a experiência das mulheres, mas se eu começar com esse discurso vou acentuar o que nos separa. A filosofia da diferença é uma filosofia relacional, é uma filosofia das multiplicidades. Como diz Deleuze, a questão não é “ou”, mas “e”: precisamos criar links, porque nosso mundo já está fragmentado, segmentado, ilhado. O que está faltando é justamente articulação, conexão, rizoma. O difícil é eu, uma mulher branca, ficar amiga de uma mulher indígena e a gente se entender. Ou ter um namorado negro e a gente se dar bem. Difícil é se conectar, não reforçar as caixas – nelas nós já estamos. O neoliberalismo acabou com a gente, porque valoriza esse indivíduo cada vez mais ilhado em nome da liberdade. É você com você mesmo e, se fracassar, a culpa é sua. Ninguém conta com ninguém. Esse mundo é muito assustador e por isso a subjetividade é tão fundamental: se você ficar pensando nos termos do século 19, um pensamento burguês… Como pode ser crítico do capitalismo e defender a competição? Fica difícil entender.

IR: Outra declaração sua muito interessante é de que as mulheres aprenderam a subverter, mesmo que não saibam disso. O feminismo criou práticas de si?

MR: A principal coisa que o feminismo traz, de cara, é “eu não quero ser essa mulher que vocês querem que eu seja”. O feminismo começa com uma recusa dos padrões que ditam a feminilidade – que eram muito difíceis e ficaram insuportáveis. O feminismo pergunta se você já olhou para você mesma, se sabe que existe uma coisa chamada clitóris. As jovens têm me dito que o clitóris é maior do que se imaginava – há uma série na Netflix que fala sobre isso, Os fundamentos do prazer. Se hoje a gente ainda não conhece o corpo das mulheres, imagina 50 anos atrás ou mais! O feminismo fez as mulheres não renunciarem a si mesmas. Ele disse: “você tem que olhar para si mesma, conhecer o seu mundo e ver quem você é”. Não somos como os homens e não dá para lutar para entrar no mesmo lugar. As mulheres têm outra cultura, são diferentes – então foi a mudança do feminismo da igualdade para o feminismo da diferença. Somos plurais e diferentes. Não somos incitadas a ir à guerra. Nas guerras mundiais quem segurou a cidade foram as mulheres e, quando os homens voltaram arrebentados, quem cuidou deles também fomos nós. O mundo exige das mulheres muito mais do que exige dos homens. Para você ser uma intelectual, tem que ser mais brilhante do que eles – e isso precisa chegar no patamar deles. Quando estudei a história da prostituição eu precisava justificar a importância do tema todo santo dia. Depois cansei e passei a falar que era porque eu queria ser a dona do bordel – assim pararam de me encher. Esses temas não tinham espaço na academia e na historiografia, e isso em todas as áreas. Quando eu frequentava a União de Mulheres, uma mulher comentou o quanto ficava espantada com o fato de que, toda vez que um espaço na cidade ficava livre, virava campo de futebol. Para as mulheres, sobrava assistir com os filhos. A cidade é fálica. Ás vezes não tem a elaboração teórica, tem a experiência – por isso eu acho que as mulheres subvertem. A elaboração teórica vem depois. Pode ser que as mulheres mais jovens venham com um discurso mais estruturado, mas existe uma experiência de subversão feminina muito forte. Porque afinal, se você renuncia a si mesma, você morre – então é preciso criar saídas. E as mulheres sempre souberam dar respostas para sobreviver. Os homens são muito mimados, sejam crianças ou adultos: tem sempre uma rede feminina necessária para que eles se saiam bem, seja no que for. A diferença de tratamento entre mulheres e homens é muito grande e todo mundo percebe. O mundo tem mudado muito. Eu não tenho netos ainda, então não convivo com crianças, mas acho que há mudanças bem grandes no sentido de desfazer essa disparidade. O pós-feminismo faz muita diferença, as novas gerações têm outra cabeça. A rainha do lar e a mulher assexuada são modelos que já foram. A questão é como criar pontes, nosso mundo precisa de pontes entre pessoas e entre emoções. A gente estava muito confinado antes mesmo da pandemia.

Você tem que olhar para si mesma e perceber se é competitiva ou não. Se é amiga ou não, se é generosa ou não. Não existe natureza humana – o que existe é o trabalho sobre si, como diziam os gregos. Você precisa se elaborar.

IR: Como o cuidar de si mesmo vincula o cuidado com o outro?

MR: O feminismo puxou o cuidado de si como um olhar para você, para o seu corpo e para a sua subjetividade – isso é fundamental e falta pensar sobre isso aqui no Brasil. Você tem que olhar para si mesma e perceber se é competitiva ou não. Se é amiga ou não, se é generosa ou não. Não existe natureza humana – o que existe é o trabalho sobre si, como diziam os gregos. Você precisa se elaborar. Por exemplo: todo mundo tem inveja. Adorei quando Caetano disse que transforma a inveja em inspiração. Quando invejo uma pessoa, desejo que ela continue muito bem porque daí tenho de onde copiar! Não dá para você dizer do dia para a noite que é feminista e pronto – ou que é revolucionária ou anarquista, sem ter um trabalho sobre si mesma. Não adianta ter um trabalho feminista na favela nas quartas-feiras à tarde e fora dali ser filha da puta, dar balão, ser competitiva. Tem uma questão ética muito forte envolvida porque nós não nascemos no mundo da cooperação e da amizade. Nós nascemos na competição, na violência, no Leviatã de Thomas Hobbes. Temos que ir na contramão disso. É claro que eu sou competitiva muitas vezes e quero brilhar, mas você sabe quando está dando balão em uma pessoa ou não. Então você precisa optar. A gente criticava os homens que eram revolucionários e batiam na mulher, não é verdade? Então, para a gente vale o mesmo. É um trabalho social, com o outro, em que você se constitui – por isso é cuidado com o outro. Faço um investimento muito grande na subjetividade porque acredito que o feminismo veio para melhorar o mundo. Encontrei uma austríaca chamada Rosa Mayreder, dos anos 20. Ela diz que o feminismo não veio para destruir os homens, ao contrário: veio para socorrer os homens porque os heróis estão cansados. Ela está vendo o fim da I Guerra Mundial. Os homens faliram. A sociedade masculina e machista faliu. Nós estamos em um mundo falido – olha o presidente do país. Existem práticas bolsonaristas do nosso lado e as feministas fazem a crítica disso. Embora a questão não seja ser mulher, porque você pode ser mulher e ser misógina. E pode haver um homem filógino, que é o oposto de misógino. Eu amei encontrar a palavra. Por que a gente só deve ficar com a merda? Por que os nossos temas são rebaixados? Todo mundo sabe o que é misoginia, mas não filoginia. Misoginia é ódio às mulheres e filoginia é amor às mulheres, amor à cultura feminina. Precisaram vir os franceses com a história das emoções para que elas fossem valorizadas – você vê, é só colocar um homem na frente que dá certo. Porque esse é um mundo misógino, que não respeita as mulheres. A filoginia para mim foi uma descoberta. Fiquei perplexa ao perceber que a gente só aprende o negativo. Há homens filóginos – Georg Zimel, por exemplo, discute a cultura feminina em 1902. Ele diz que as mulheres vão melhorar o mundo porque elas estão entrando com um outro olhar, uma outra maneira de ser. Ele escreveu em 1902, mas eu li só em 1994. No mais, as mulheres sempre fizeram a crítica – mas o vencedor produz o silêncio dos vencidos. Daí a importância do feminismo, que traz a história das mulheres e de seus valores, e mostra que o cuidado consigo é um cuidado com o outro. É uma outra maneira de pensar, é um pensar relacional – só vou saber se sou generosa ou se sou amiga me medida em que me relaciono. Você se constitui nas relações, mas o aporte da filosofia da diferença é pouco incorporado no feminismo brasileiro.

IR: Dá para perceber a presença de alguns binarismos no movimento feminista, como parto normal/cesariana, por exemplo. Na sua experiência, quais são os principais preconceitos que dividem as feministas? E como superar essa vontade de ditar a verdade para outras mulheres?

MR: Como superar? Percebendo que é uma competição. Nós estamos fazendo a crítica do neoliberalismo, que promove a competição e a concorrência e diz que é só assim que a economia pode crescer. Se nós estamos combatendo a concorrência e questionando o empresário de si mesmo, o cuidado de si é fundamental no cuidado com o outro. Me lembrei do livro A nova razão do mundo, de Pierre Dardot e Christian Laval. Eles são marxistas franceses que abraçaram Foucault. Adoraram O nascimento da biopolítica, que é onde Foucault estuda o nascimento do neoliberalismo e escreveram o livro que foi publicado pela Boitempo, uma editora brasileira bem marxista. Assim como Foucault, eles concluem que a gente deve combater a concorrência e o empresário de si mesmo. Johanna Oksala, Wendy Brown e várias outras autoras têm discutido isso. Para Foucault, o neoliberalismo é uma racionalidade, uma lógica, que extrapolou o mercado e saiu para o mundo – chegou inclusive na esquerda. Você vê a lógica capitalista neoliberal em grupos de esquerda. Antigamente a gente chamava de autocrítica e hoje a gente pode chamar de cuidado de si. É essa ideia de que você tem que se olhar e se elaborar. Não é o suficiente se declarar feminista. A que vieram os feminismos? Porque se o feminismo é um movimento de mulheres contra mulheres, tem que mudar de nome. A questão da subjetividade dá a ver como nós estamos sendo produzidos o tempo todo: nossos corpos, nossas leituras, nossas maneiras de ser. Mostra também como é preciso estar aberto às críticas, mas entendo que a crítica não é necessariamente uma destruição. É uma crítica que ajuda a crescer. E isso vale para a avaliação em bancas de teses e dissertações, por exemplo. Se você só diz que o trabalho é lindo, você está desrespeitando a pessoa, você não ajuda, não multiplica caminhos. Embora certamente seja muito mais fácil, não é cuidado. A crítica é uma forma de levar a sério o trabalho do outro. E essa cultura do eu mais eu também ameaça os grupos de esquerda, ninguém saiu incólume. É preciso pensar na subjetividade e em como você está se constituindo, como é a sua relação com o outro. Mas não estou dando receitas: o trabalho sobre si e o cuidado com o outro é muito difícil, inclusive para mim. Eu também não sei, mas acho que as coisas têm que acontecer coletivamente. E há parâmetros, porque sabemos muito bem quando alguém é violento com a gente.

É difícil a gente se entender e se aceitar. Precisei ir me explicando e por isso acho que o encontro com Foucault não foi só intelectual, mas existencial. Tem sido um encontro até hoje.

IR: Em uma entrevista publicada na Revista Humanidades em Diálogo em 2016, a senhora disse que encontrou Foucault em um momento de vazio, de uma forte tendência a uma filosofia externa. Também disse que a sua relação com ele é muito mais existencial do que intelectual. De que forma esse referencial deslocou o seu trabalho e o que ele trouxe para a vida da Margareth como mulher?

Fui encontrando Foucault aos poucos. No início eu não entendia nada: “quem é esse cara? Que chato, que doido!”. Quando minha amiga apareceu com História da loucura, eu disse “Pelo amor de Deus! Não quero nem olhar!”. Mas o meu encontro com Foucault se deu em uma conjuntura de crise das esquerdas: aquela esquerda que eu fui buscar achando que era a saída foi presa, caiu. Meus próprios amigos que eram militantes me disseram: “nós erramos, nossa análise está furada”. E eu vim com muita crítica também. Aí todo mundo foi preso e depois chegou uma outra esquerda. Outra coisa que foi muito importante no contexto desse encontro foi a terapia, a psicanálise, a psiquiatria… as “psi”. Fui parar em um psiquiatra japonês filho de monge budista. Expliquei que não tinha dinheiro, mas ele me disse que eu esquecesse esse assunto e fosse até o consultório 3 vezes por semana. Só tenho a agradecer a sorte que tive porque me reestruturei. Foucault me ajudou a entender esses processos, a entender a minha rebeldia e porque eu não queria casar. É difícil a gente se entender e se aceitar. Precisei ir me explicando e por isso acho que o encontro com Foucault não foi só intelectual, mas existencial. Tem sido um encontro até hoje. O último livro dele, a crítica ao cristianismo… Sou ateia. Não entendo por que as pessoas precisam de Deus. Eu preciso de gente. Aqui. Agora. Preciso do mundo aqui, não lá. Deleuze e outros também são muito importantes para mim, mas Foucault me ajudou a entender, me fez perceber que a virgindade tinha história. Nesse sentido, Foucault vai além de Marx porque mostra que a burguesia dividiu não só as classes, mas a própria humanidade em normais e anormais, em heterossexuais e homossexuais e patologizou metade do mundo. Uma violência desse tamanho é pior que a divisão patrão e operário. Esse homossexual nem entrou na fábrica – ele foi para o hospício, e Foucault foi estuda-lo. Foucault dá muitas respostas e com isso levei 10 anos para fazer pós-graduação. Não me formei e fui logo fazer pós. Eu queria fazer a revolução. Não sabia muito bem por onde ir – fui encontrando aos poucos, inclusive os temas que me interessaram 10 anos depois. Aí sim fui parar na Unicamp, encontrei os anarquistas… mas tudo demorou muito. Acho que nasci muito cedo, devia ter nascido 20 anos depois porque precisei esperar por Foucault e então já tinha 26! (risos). A filosofia da diferença precisa te dizer, pessoalmente. Te atravessar. Eu sou filha de músicos. Meu pai era músico, viveu da música. Eu e meus irmãos somos muito emotivos, muito sensíveis, e precisa fazer sentido. Se as coisas não fazem sentido a gente não consegue disfarçar, sabe? Então me agarrei a isso: tá certo, tem que fazer sentido, tem que ter paixão! Foi uma opção de vida. Meu pai e minha mãe eram assim. Meu pai mesmo pobre decidiu que tocar violão era o que ele queria fazer da vida e de repente ele bombou. Uma de suas músicas fez sucesso e ele teve um programa no rádio e outro na tv com a Hebe Camargo… Antônio Rago e seu regional, mas ele arriscou. Era filho de imigrantes italianos – meu avô era verdureiro, a família era pobre. Mas ele tocava violão e naquela época quem tocava violão era vagabundo. Só que ele deu certo! Morreu feliz, com 93 anos, e dizendo “ainda bem que eu só toquei!” (risos). A gente é de uma família que apostou na paixão, na vontade de viver, na potência de vida. Meu pai não tinha esse vocabulário. Eu encontrei esse vocabulário na filosofia da diferença, no Deleuze, no devir, na ideia de potência de vida.

IR: No último 8 de março, o presidente disse que as mulheres “estão praticamente integradas à sociedade” e que “assim como a mulher foi feita do homem, também o homem nasce da mulher e tudo vem de Deus”. Por outro lado, tudo indica que Bolsonaro não será reeleito. Mas o discurso de ódio e a misoginia tomaram força, ou ao menos coragem, nesses 3 anos e meio de governo. De que modo o movimento pode lidar com essa herança no pós-bolsonaro?

MR: O fascismo um dia caiu. O nazismo também. Os anos 20 bombaram, os 30 caíram e os 60 bombaram de novo. Então há épocas históricas de expansão, de potência, de criatividade, e épocas em que a direita vem e acaba com tudo porque não suporta a liberdade. Realmente é um trabalho imenso. Às vezes acho que o mundo acabou, que não vai dar mais. Mas de repente vejo um Haddad no Roda Viva e fico feliz da vida. Ideias, soluções, possibilidades. Preciso muito dessas vozes, dessas falas, dessas pessoas do bem que não suportam os discursos religiosos. Não adianta olhar para cima – temos que olhar para o aqui e agora. Os feminismos têm que estar muito atentos as suas próprias posições, no sentido de conseguirem se articular. Nós precisamos de amizade entre as mulheres, não de competição. Os homens disseram que as mulheres eram incapazes de amizade porque elas estão sempre girando em torno de um deles – pai, irmão, namorado. De Aristóteles para cá, é esse o discurso. Falo a partir da tese de uma doutoranda minha, Marilda Ionta, foi ela quem me trouxe essas questões sobre a amizade entre mulheres. O feminismo traz isso, porque sem amizade entre as mulheres não tem feminismo. O movimento feminista depende de um apoio entre as mulheres – só que esse apoio não pode ser identitário. A gente tem que superar as competições, as concorrências, e perceber que são capturas que nos ameaçam. E aprender a criar pontes. A educação dos jovens é fundamental e os feminismos entraram nas escolas e universidades, mas eles têm que entrar de uma maneira potencializadora, não competitiva. Não é para as mulheres destruírem os homens, não é para inverter as relações e dominar os homens. Não é essa a questão. A questão é como construir um mundo fundado na solidariedade, na liberdade, na justiça social – nesses valores éticos. A questão da subjetividade ética é fundamental e não dá para não discutir isso. Vem uma feminista e me diz: “sabe Margareth, o problema é que você é uma acadêmica, mas eu sou uma acadêmica e militante”. Me ocorre que ela devia ir ao psiquiatra porque a questão não é essa. Para Foucault o intelectual é específico, não é universal e nem tem hora marcada para ser militante. O intelectual é ativista frente às relações de poder – em qualquer lugar, o tempo todo. Nós queremos respeito para todo mundo. É o que eu gosto no discurso da Heloísa Buarque de Hollanda, por exemplo. É uma transformação social, ela é para todo mundo. Ontem um amigo me disse que a esquerda era festiva e que hoje está séria demais. Nós precisamos lembrar de Foucault: não é preciso ser triste para ser militante. Na Introdução à vida não-fascista ele diz: “não se apaixone pelo poder”. Precisamos de festa.

** Crédito da imagem @edu.fortes.

Por Instituto Racionalidades

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