Marcia Tiburi: “A filosofia é o começo da política. A política sem filosofia se chama guerra.”

Por Amanda Kaster e Pedro Soler

Nessa nova entrevista para o blog do Instituto Racionalidades, ficamos muito felizes e contemplados ao conversarmos com Marcia Tiburi, filósofa nascida em Vacaria (RS), doutora pela UFRGS, artista e um dos grandes nomes no combate ao fascismo no Brasil.

Marcia publicou livros fundamentais para compreendermos a atual situação de nosso país, como por exemplo “Como conversar com um fascista” e “Como derrotar o turbotecnomachonazifascismo”. Atualmente, devido a constantes ataques e ameaças, Tiburi encontra-se exilada e não tem previsão de voltar ao Brasil sem uma mudança para uma conjuntura que não a coloque em risco.

Apesar da violência a qual foi submetida, a filósofa não baixou a cabeça, segue sua produção intelectual e prática de luta. Conversamos sobre sua vivência e a realidade brasileira na entrevista que pode ser conferida a seguir:

Instituto Racionalidades – A dimensão psicológica do machismo e do fascismo, a dimensão subjetiva, teve uma vitória frente a racionalidade progressista nos últimos anos no Brasil. Como se dá esta luta no âmbito das subjetividades? Quais devem ser os meios utilizados pela esquerda neste papel se quiserem reverter a dominação fascista do discurso? Qual o papel da filosofia neste embate?

Marcia Tiburi – Vamos chamar de dimensão psicossocial. Mas não devemos ficar nisso. Quando falei disso em « Como conversar com um fascista », que foi publicado em 2015 quando ninguém falava ainda sobre fascismo, eu me referia ao estado de « prontidão » das pessoas movidas por um regime de pensamento autoritário. Isso era subjetivo sim, mas foi manipulado por grupos no poder. E por agitadores fascistas como o MBL. A manipulação levou à objetividade, ao avanço institucional do fascismo, como na operação lava-jato, totalmente fundada no Estado de exceção que implica já um fascismo de Estado. Ao longo dos anos eu tenho tentado falar sobre esse caminho dialético entre o fascismo institucional e o cotidiano, entre a vida popular e o poder instituído.

E nesse caso há um problema para responder a sua pergunta sobre « como se dá a luta no âmbito das subjetividades » porque nem todo mundo ainda se deu conta de que se trata de fascismo. Há pessoas que aderem sem nunca ter pensado a respeito. Não tivemos um projeto de educação que se preocupasse com política, autoritarismo e fascismo. O próximo governo vai ter que pensar nisso. Os fascistas não serão vencidos pela inércia. Se o fascismo não for derrubado nas urnas, ele acabará com o país, como já está fazendo desde 2016.

IR – Trump ficou famoso em seu mandato por usar o termo “fatos alternativos” para justificar suas mentiras à presidência. No Brasil, uma das posições mais abordadas para este mesmo fenômeno é a ideia de opinião pessoal, que valeria tanto ou mais do que um fato comprovado. Em tempos de pós-modernidade, a publicidade tomou o lugar da verdade?

MT – Sim. A imagem e a aparência têm mais valor do que tudo na era da nacionalidade publicitária. Quando todo mundo sabe que se trata de uma mentira, então é preciso encontrar novos nomes para sustentar a falsidade sem a qual o poder cai por terra. A publicidade explica bem isso, porque a questão publicitária é conseguir vender um produto ou uma ideia quando ninguém precisa dela. Pós-verdade foi uma palavra inserida nesse contexto para escamotear a enganação.

IR – Como é trabalhar a filosofia do campo político?

MT – Ora, a filosofia é o começo da política. A política sem filosofia se chama guerra.

IR – Então, é fundamental que professores de filosofia e intelectuais em geral se posicionem sobre política e contra o fascismo?

MT – Qualquer cidadão deve fazer isso. Mas no caso dos professores, esperamos sempre que sejam pessoas mais conscientes do que o resto da população. Infelizmente há professores pouco preocupados com as questões políticas, mas são uma minoria. A classe profissional é combativa, apesar dos pesares, na guerra que se faz contra a educação e os professores há bastante tempo em escala global. E no Brasil sob Bolsonaro é simplesmente uma tática de terra arrasada o que está sendo feito. O escândalo do MEC agora faz parte disso.

IR – As mulheres são a maioria percentual da população, são também a maioria entre os profissionais da Educação e maioria em quase todas as faixas etárias da educação básica no país. No entanto, continuam sub representadas em espaços de poder, inclusive na política, apesar do movimento recente de incentivo e de cotas para sua participação. Como discutir processos de subjetivação que abram fissuras e perspectivas de espaços de liberdade para as mulheres?

MT – Abrir fissuras no sistema patriarcal-capitalista-racista-capacitista não é fácil, mas é isso o que o movimento feminista vem fazendo e, de fato, se o feminismo crescer, a sociedade conservadora e autoritária cairá por terra. Por isso o feminismo é tão odiado. Mas os homens detêm o monopólio da violência em sentido subjetivo e objetivo. A cultura feminina e feminista é contra a violência, é a cultura cuidado e da atenção, da proteção e do amparo. A cultura machista é a cultura do abandono. Atualmente as mulheres têm formado umas às outras para o feminismo. Creio que avançaremos transformando a cultura. As feministas estão em ação, apesar e contra todos os limites impostos pela cultura patriarcal.

IR – Existe uma economia política da linguagem?

MT – Certamente. E eu tenho tentado elaborar isso nos meus livros. Me refiro ao cálculo que o poder faz sobre a linguagem. Isso inclui compreender os meios de produção da linguagem, o uso que as instituições fazem dos discursos, a circulação dos discursos nas redes, no que chamei de « cotidiano virtual », a paisagem sonora, o fetichismo da música e dos produtos culturais enquanto transmissores de conceitos, ideias ou clichês.

IR – Uma das frases que mais se ouve na política é a que “a história se encarregará de julgar” fulano ou beltrano. No entanto, como nos foi mostrado com a Lei da Anistia, muitos males que foram praticados ficaram impunes e pessoas livres para continuarem em posições de poder. Sabendo que não podemos julgar estes crimes novamente, como podemos lidar com esta questão eticamente para impedir que situações como esta voltem a acontecer?

MT – De fato, estamos no país do esquecimento e a anistia é uma jogada oportuna para os carrascos. Um governo corajoso como o de Dilma acabou por isso. Então, fica a questão: como? Eu me voltei para a arte. Atualmente trabalho com retratos dos torturadores da comissão da verdade. Tenho feito retratos em camisas. As cabeças dos carrascos são representadas em meio ao vermelho e ao verde oliva. É a arte a serviço da memória. Um país sem memória não evolui. Precisamos deflagrar um sentimento de urgência em relação à memória da ditadura da tortura como o movimento negro vem fazendo em relação à escravização e suas consequências.

IR – A senhora foi perseguida politicamente e usada como token por milícias digitais ligadas a grupos de extrema direita no país. Ainda que o governo mude no próximo ano, estas redes já foram bem estabelecidas e mostraram a que vieram, e será muito complexo desmontá-las em sua totalidade. Além disso, esta questão não é uma realidade no Brasil, mas também em outros países onde o fascismo e autoritarismo parecem estar em alta. A pergunta que se faz é: voltamos a um período de rejeição de outridade, este é apenas um ciclo político extremo ou estas tendências sempre estiveram presentes, apenas escondidas por certo período?

MT – Eu comecei a desenvolver esse conceito do « token » para explicar o meu caso, porque além de analisar o tema, sou vítima. Me dei conta de que me atacam até hoje com objetivos pragmáticos: monetização na internet, ou seja, ganham dinheiro falando mal de mim e de pessoas de esquerda desde 2018; mas também se capitalizam politicamente me atacando. Esses dias vi a Damares Alves usando um tuíte meu para isso, mas muitos pré-candidatos de extrema-direita fazem isso. Quem mais se beneficiou desses ataques contra mim foram os membros do MBL. Em geral, eles escolhem alguém para usar como alavanca e me usaram para isso. Como usam o Brasil como laboratório. O mundo está fascistizando mas o Brasil é laboratório disso tudo. E pessoas como eu, como Jean Wyllys somos cobaias disso tudo.

IR – Você está longe – fisicamente – do Brasil, mas continua a ser uma voz de denúncia sobre os desmandos do governo atual, principalmente no que se trata da Educação, Mulheres e Direitos Civis. Com as eleições de outubro neste ano, há uma grande expectativa de que haja uma mudança de governabilidade. Independentemente do resultado, como você avalia que será o trabalho de resgate destes temas à sociedade para o futuro governante? Você pensa em voltar para o Brasil?

MT – Se o fascismo continuar no comando, o banho de sangue que está em curso vai se aprofundar. Haverá mortes em massa, mais do que vimos até agora. Se vencer a democracia, representada por Lula, haverá chance de retomar o país, mas tudo será bem complicado e exigirá máxima atenção a golpes, assassinatos e ataques da imprensa golpista que continua no ataque a Lula e ao Partido dos Trabalhadores. Eu não tenho porque voltar porque preciso trabalhar para viver e não tenho emprego no Brasil. Além disso, eu dificilmente possa entrar em sala de aula com segurança, considerando que, como perseguida e ameaçada de morte, a minha presença põe em risco a vida de outras pessoas também.

IR – Por fim, gostaria de agradecer em nome do Instituto Racionalidades, e que tenhamos uma boa luta neste ano de eleições. Se puderes sintetizar, gostaríamos de saber, e mais do que isto, necessitamos saber o que precisamos saber para derrubar o macho fascismo brasileiro? Como chegamos neste ápice bolsonarista de personificação tão nefasta do macho brasileiro? Saber lidar com a figura do macho, dos homens e mulheres que foram inseridos na retórica fascista será decisivo neste ano?

MT – Eu é que agradeço a vocês. Superar o fascismo somente será possível superando o patriarcado capitalista. O trabalho será longo e envolverá a cultura, a educação e a produção de uma consciência crítica. Eu acredito em um programa eco-social-feminista.

Por Instituto Racionalidades

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