Homeschooling e as prioridades do governo federal
Projeto que regulamenta o ensino domiciliar avança no Congresso Nacional

Por Clarissa Henning

No dia 18 de maio a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei que regulamenta a prática do homeschooling no Brasil. Foram 264 votos a favor, 144 contrários e 2 abstenções. O plenário rejeitou todos os destaques propostos pelos oposicionistas e agora o PL precisa ser votado no Senado – mas o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, já avisou que lá essa discussão não é uma prioridade.


A polêmica não é nova. Fazem pelo menos 10 anos que esse tema transita no Congresso Nacional. Aliás, o projeto aprovado é um substitutivo da deputada Luisa Canzini (PSD-PR) a um mais antigo, de 2012, proposto por Lincoln Portela (PL-MG).

Desde que assumiu a presidência, em 2019, Jair Bolsonaro defende a regulamentação do ensino domiciliar. Canzini foi incumbida pelo próprio governo federal a retomar a discussão da proposta.

Os sentidos das prioridades educacionais do governo de Jair Bolsonaro


Hoje o ensino domiciliar é ilegal. Os responsáveis que não matriculam os filhos na escola podem ser acusados do crime de abandono intelectual.


De acordo com a Constituição Federal, a educação é um direito social e é dever do Estado e da família garanti-lo. Por seu turno, a Lei de Diretrizes e Bases diz que as famílias são obrigadas a matricularem seus filhos na escola.


Em 2012 uma família gaúcha entrou na justiça pedindo a legalização da prática e em 2018 a discussão foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal. Os pais alegavam que a filha tinha colegas mais velhos e que nem a linguagem e nem as condutas desses estudantes eram adequadas para a idade da menina. Outro motivo apresentado era religioso: eles não concordavam com a teoria da evolução, de Charles Darwin, e não gostariam que a filha fosse instruída com base nessas premissas científicas.


Embora a maioria dos ministros tenha reconhecido que a prática do homeschooling é amparada pela Constituição Federal, o STF determinou que ela é ilegal – ao menos até que o tema seja regulamentado.

O que a Câmara aprovou*

Argumentos pró e contra o homeschooling*

Socialização e custos

Segundo a ANED – Associação Nacional da Educação Domiciliar, cerca de 7.500 famílias brasileiras adotam o homeschooling, o que incluiria 15 mil crianças e adolescentes nesse formato de ensino. Os motivos vão desde crença religiosa até pais que viajam muito e que por isso não conseguem manter os filhos na escola.


Por outro lado, ainda que muitas manchetes indiquem que o PL do homeschooling divide os brasileiros, uma pesquisa do Datafolha divulgada no dia 14 de maio mostra que quase 80% são contra o ensino domiciliar e acreditam que as crianças devem ter o direito a frequentar a escola – mesmo que os responsáveis não queiram. A importância dessa convivência foi reconhecida por 95% dos entrevistados.

Especialistas destacam a socialização no ambiente escolar como fundamental para o desenvolvimento social, psíquico e afetivo. Para a professora da USP, Carlota Boto, o contato diário com ideias e crenças diferentes é uma forma importante de aprender a conviver com as diferenças. Além disso, ela também critica que o modo como a formação de professoras e professores é desmerecida por quem defende o projeto: “Ninguém teria a ideia de tirar a criança de um médico e se tornar médico dessa criança. Mas por que, na situação da educação, pode-se fazer e colocar a situação análoga?”.

Para a assessora de programas e políticas sociais da CNDE – Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Marcele Frossard, uma das objeções mais sérias a levar em consideração é que a maioria dos abusos contra crianças acontecem no ambiente doméstico. A presença na escola é uma das formas de perceber pistas desse tipo de violência: “A gente tem o professor, o coordenador pedagógico, há toda uma rede de proteção que vê essas crianças e notam mudanças de comportamentos e que vão acionar outros órgãos, como a Justiça, os órgãos de proteção. E isso vai deixar de existir”.


Encarar com seriedade os problemas da educação brasileira, especialmente aqueles decorrentes da pandemia, deveria ser prioridade para o governo federal – e não a aprovação do ensino domiciliar. É essa a avaliação da Diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais, da FGV, e ex-Diretora de Educação do Banco Mundial, Cláudia Costin: “Estamos com crianças, em grande número, de quinto e até sexto ano, analfabetas. Com dois anos fora da escola, com os pais na rua buscando alguma fonte de renda e tentando aprender sem algum equipamento e conectividade, a última coisa que temos que pensar neste momento é o homeschooling“.

Além de todos os custos sociais e emocionais, outro problema é que a aprovação do PL representa uma bomba-relógio para estados e municípios. Isso porque eles serão responsáveis tanto pela regulamentação quanto pela implementação da prática. De acordo com o professor de políticas públicas da Universidade Federal do ABC, Salomão Ximenes, o projeto silencia tanto sobre os custos quanto sobre os desafios para implementá-lo: “o projeto trata cada residência em que há um estudante inscrito no homeschooling como se fosse uma escola” que deve receber algum tipo de fiscalização pelo poder público.


O professor destaca que a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação e a União dos Secretários Estaduais de Educação são contrárias ao projeto, e também as entidades de fiscalização – como o Ministério Público e os Conselhos Tutelares. Para Ximenes, caso essa ficção “para inglês ver” for realmente implementada, haverá um ônus gigantesco – tanto administrativo quanto financeiro.

Os sentidos das prioridades educacionais do governo de Jair Bolsonaro

Quando a família passa a ser a principal responsável pelas aulas, há uma alteração importante e ela não deve ser minimizada. É bom lembrar que em 2019 o governo vinculou a proposta do ensino domiciliar ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos – e não ao Ministério da Educação. O entendimento parte do princípio da liberdade individual e se aproxima do movimento Escola Sem Partido, que diz lutar contra uma suposta ideologia de esquerda nas escolas.


De acordo com o Durma com essa, podcast do jornal Nexo, em 2021 Bolsonaro enviou uma lista com 35 projetos a serem priorizados pelas duas casas do Congresso Nacional – Câmara dos Deputados e Senado. O homeschooling foi a única proposta da área da Educação que constava na lista.


Ao mesmo tempo, o presidente vetou recursos para que escolas públicas ajudassem os estudantes que não tinham acesso à internet na época mais séria da pandemia. E, como os últimos dois anos deixaram claro, a educação em casa aprofunda as desigualdades – mesmo quando a responsabilidade pelo processo pedagógico é da escola e não da família. Foi a faixa mais pobre da população quem enfrentou maiores dificuldades com a educação dos filhos.


Vamos aguardar para conferir se o Senado vai aprovar o homeschooling e seguir a outra casa do Poder Legislativo. Mas talvez ele avalie a proposta de outra forma – uma que realmente proteja os direitos de crianças e adolescentes. E, de quebra, valorize tanto a escola quanto os profissionais que a fazem funcionar.

Por Instituto Racionalidades

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