Quando a mentira se veste de documentário

Por Clarissa Henning

A Brasil Paralelo é uma produtora de conteúdo audiovisual que se autodenomina “educacional e apartidária” — mas que, desde sua fundação em 2016, vem se consolidando como um dos principais aparelhos ideológicos da extrema-direita brasileira. A empresa atua com financiamento privado, discurso moralizante e estética refinada. Seus documentários questionam consensos científicos, relativizam o golpe de 1964, reescrevem o colonialismo e atacam sistematicamente o feminismo e os movimentos sociais.

Ainda em 2023, a produtora publicou um vídeo distorcendo o caso de Maria da Penha, referência nacional no combate à violência doméstica. De lá para cá, o “documentário” teve alguns desdobramentos importantes e no dia 27 de março a Brasil Paralelo foi finalmente processada pela Advocacia-Geral da União (AGU).  É sobre isso que falamos neste texto — porque esse episódio ilustra o uso da desinformação como arma política e mostra que a mentira, quando bem produzida, corre o risco de parecer legítima. Isso tem consequências.

Produzindo dúvida, fabricando ódio

No vídeo em questão, a Brasil Paralelo dá palco à versão do agressor condenado por tentar assassinar Maria da Penha — ignorando provas, laudos e sentenças judiciais. A tentativa é clara: reverter o símbolo de uma conquista histórica lançando mão de uma dúvida plantada. Revitimar a mulherdescredibilizar a justiça e, com isso, atacar a Lei Maria da Penha.

A estética do documentário serve aqui como escudo: imagens bem editadas, trilha sonora emotiva e um suposto “olhar imparcial” constroem uma narrativa que não apenas falseia os fatos, mas questiona o direito da vítima à sua própria história.

O vídeo só ganhou ampla visibilidade ao longo de 2024 – ano das eleições municipais -, impulsionado por influenciadores da extrema direita e redes de desinformação digital. Os efeitos foram graves: em junho, Maria da Penha foi incluída no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos (PPDDH) do governo do Ceará, após se tornar alvo de ameaças virtuais e campanhas de difamação. O “documentário” passou a ser usado como argumento por grupos extremistas que tentam negar o feminicídio e atacar a legitimidade da ativista.

A resposta institucional chegou: o governo federal, por meio da AGU, entrou com uma ação judicial contra a Brasil Paralelo, pedindo indenização por danos morais coletivos e exigindo a divulgação de conteúdo reparatório, elaborado pelo Ministério das Mulheres. Na petição, a AGU afirma que a produtora tenta descredibilizar a justiça, atacar uma das principais políticas públicas do país e violar direitos fundamentais sob o pretexto da liberdade de expressão.

O uso político da desinformação

Essa não é uma ação isolada. É parte de uma estratégia mais ampla, já bastante documentada por pesquisadoras como Mayara Balestro, que busca ocupar o imaginário coletivo com versões distorcidas da realidade. A Brasil Paralelo opera como um “intelectual coletivo” da nova direita brasileira, oferecendo ao seu público um pacote completo: heróis e vilões prontos, valores morais absolutos e um mundo dividido entre “nós” e “eles”.

Não se trata apenas de erro ou descuido — mas de uma pedagogia do ódio cuidadosamente roteirizada, que transforma memória em campo de batalha. A liberdade de expressão é usada como retórica para justificar ataques simbólicos. A dúvida vira ferramenta de corrosão institucional.

O caso Maria da Penha é mais que um episódio jurídico: é um marco civilizatório. Recontá-lo dessa forma, em 2025, significa colocar em risco uma das políticas públicas mais importantes da história recente do país. E não à toa, o alvo é uma mulher.

A lógica antifeminista é um dos eixos do projeto conservador de poder: silenciar, desautorizar, ridicularizar. Quando se ataca a vítima, se deslegitima toda uma luta coletiva. A narrativa construída pela Brasil Paralelo não é só sobre Maria da Penha — é sobre todas as mulheres que ousaram transformar dor em política.

Disputar a história é disputar o futuro

O que está em jogo aqui não é apenas a memória de uma mulher. É a tentativa de redesenhar os contornos da realidade, rebaixar a história a enredo e transformar verdades jurídicas em versões opcionais. Quando isso acontece, o debate público deixa de ser um espaço de confronto de ideias e passa a ser um campo minado por distorções calculadas. É a política sendo esvaziada por dentro, substituída por narrativas que já nascem com um inimigo a ser destruído.

A desinformação não atua apenas no presente. Ela altera a percepção do passado e, com isso, condiciona os caminhos do que ainda pode ser. A disputa não é apenas sobre quem tem razão, mas sobre quem pode dizer o que é razoável. Quando tudo vira opinião — inclusive o que foi comprovado, julgado, documentado —, as instituições perdem chão e os pactos democráticos vão sendo corroídos pela dúvida estratégica.

É por isso que seguimos escrevendo, mesmo quando cansa. Porque o que se tenta apagar não é apenas um nome ou uma lei — é a possibilidade de um país que se reconheça na dignidade, na justiça e na democracia. E esse país, ainda que às vezes pareça frágil, só continua existindo quando há quem o narre com coragem.

Por Instituto Racionalidades

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