A queda do mundo unipolar e o despertar de uma nova ordem

Valdir da Silva Bezerra*

De acordo com interpretações de estudiosos anglo-saxões, o sistema internacional necessita de um hegemon incontestável, cuja superioridade militar e econômica seja tão avassaladora que nenhum outro Estado será capaz de contrabalança-lo, ainda que se junte a uma coalizão de outras potências insatisfeitas; tamanha superioridade reduziria então a importância do “equilíbrio de poder” entre as Grandes Potências, devido à disparidade material entre o Estado líder e seus demais concorrentes (WOHLFORTH, 1999). Até recentemente, alguns argumentavam, por exemplo, que mesmo que eclodisse uma disputa aberta pelo poder global entre as Grandes Potências, a capacidade militar agregada da OTAN (liderada pelos Estados Unidos) superaria qualquer combinação que, digamos, Rússia e China pudessem estar dispostas a alcançar (IKENBERRY, 2014).

No entanto, esta interpretação perde um ponto muito importante. As Grandes Potências raramente ficam satisfeitas com uma situação em que se encontrem parcial ou totalmente sob o jugo de um hegemon. A Rússia é um desses exemplos. A política externa de Vladimir Putin, por exemplo, esteve estrategicamente orientada para se opor ao conceito – bem como à realização – de um mundo unipolar baseado na hegemonia americana (DUGIN, 2016). No início dos anos 2000, documentos oficiais russos alertavam sobre tentativas de se criar uma estrutura de Relações Internacionais “sob a liderança dos EUA e projetada para soluções unilaterais (principalmente pelo uso da força militar) para questões-chave da política mundial e burlando as regras fundamentais. do direito internacional” (CONCEITO DE SEGURANÇA NACIONAL DA FEDERAÇÃO RUSSA, 2000; tradução nossa).

Neste sentido, dois exemplos geralmente dados pela Rússia são: a decisão dos EUA de invadir o Iraque em 2003 sem a aprovação do Conselho de Segurança das Nações Unidas e o bombardeio da Sérvia pela OTAN em 1999 sob a liderança dos EUA, quando o hegemon fez uso de seu poderio militar (através da Aliança Atlântica) para alcançar seus objetivos políticos nos Balcãs. Ao mesmo tempo, a tradicional presidência americana do Banco Mundial e a influência política dos EUA no Fundo Monetário Internacional (FMI) tornaram-se elementos de crítica por parte de várias economias emergentes ao longo dos anos 2000, que viam nessas instituições ‘meros instrumentos’ utilizados pelos países industrializados para controlar os Estados mais pobres do Sul Global, obrigando-os a adotar políticas econômicas e sociais austeras em troca de assistência financeira.

Isso ajuda a explicar porque os BRICS [grupo político composto por Brasil, Rússia, China, Índia e América do Sul] se tornou um elemento indesejável para o projeto hegemônico, uma vez que o ele representa “um desafio indesejável à ordem mundial estabelecida conforme definida pelos EUA – e dominada pelo FMI e o Banco Mundial” (TISDALL, 2012; tradução nossa). Não obstante, é prática comum dos Estados Unidos usar sua posição financeira privilegiada no sistema para pressionar outros Estados a mudar suas decisões e sua condução de política externa. Por exemplo, depois de 2014 os EUA em (juntamente com seus parceiros ocidentais) impuseram sanções à Federação Russa no contexto da crise ucraniana, como forma de punir o país após a anexação da Crimeia.

No entanto, tais sanções não apenas foram ineficazes para mudar as posições de Moscou, como também foram enxergadas por cerca de 2/3 da população russa como mais uma “tentativa de enfraquecer e humilhar a Rússia” (LEVADA, 2016, p. 286). Agora, diante das mais duras sanções já impostas a um país na história a Ucrânia, a liderança russa se vê novamente diante de uma pressão econômica e política, pressão essa não somente direcionada contra Vladimir Putin em particular, mas também contra a população do país como um todo. Seja como for, a Rússia não está sozinha enquanto “alvo” dos formuladores de política no Ocidente. Basta lembrar que: durante a segunda metade do governo de [Donald] Trump, os EUA impuseram tarifas sobre vários produtos chineses, em retaliação ao que Washington considerou como “práticas desleais de comércio” por parte de Pequim. No que mais tarde ficou conhecido como “Guerra Comercial”, os americanos usaram sua posição como um dos maiores mercados consumidores de produtos chineses para minimizar o seu déficit comercial e tentar prejudicar a economia da China. É nesse contexto que devemos avaliar a preocupação das autoridades americanas em relação à parceria entre Rússia e China nos últimos anos. Para o governo dos EUA, a Rússia representa uma ameaça a seu predomínio militar, enquanto a China representa uma ameaça a seu predomínio econômico no sistema.

Não sem razão, a Estratégia de Segurança Nacional americana de 2017 mencionou a Rússia e a China como um desafio ao poder, influência e interesses americanos (NSS, 2017) no sistema internacional. Segundo o documento, ambos os países são ‘potências revisionistas’ que procuram moldar a ordem global de acordo com valores contrários aos dos EUA (ibidem), revelando-se como “concorrentes sérios que estão a construir os meios materiais e ideológicos para contestar a primazia e a liderança americana no século XXI” (MITCHELL, 2018, p. 1; tradução nossa). Curiosamente, há 25 anos o ex-conselheiro de Segurança Nacional dos EUA Zbigniew Brzezinski (1997) opinou que o cenário mais perigoso para a liderança dos EUA nos assuntos mundiais seria uma grande coalizão de China e Rússia (assim como outras potências insatisfeitas, como por exemplo o Irã) que poderia servir como um bastião “anti-hegemônico” unido não por ideologia (como durante a era da Guerra Fria), mas sim por suas queixas complementares contra o hegemon.

Essa parceria estratégica entre Moscou e Pequim visa, portanto, defender o conceito de ‘multipolaridade nos assuntos mundiais’, posição essa que contraria os desígnios hegemônicos e unilateralistas do Ocidente e dos Estados Unidos em particular. Ao final das contas, Rússia, China e outros atores globais importantes (como o Mundo Islâmico) continuarão sustentando a premissa de que no mundo a pluralidade de sistemas de valor deve ser respeitada, e que na prática tentativas de se suprimir a tradição dos povos (através de um processo de ‘homogeneização’ forçada) estão fadadas ao fracasso, devido à incapacidade do Ocidente (capitaneado pelo hegemon) de compreender as nuances de civilizações complexas e milenares. Portanto, o que a Rússia, a China e outros países importantes defendem é a adoção de uma ordem mundial multipolar e multifacetada, onde cada sociedade possa exercer seu direito de escolher sua própria organização política e econômica, em resumo: de escolher o seu próprio destino, de modo a anular o ‘Fim da História’ profetizado por Fukuyama no começo dos anos 1990. A história não terminou, ela continua e por mais que o hegemon não queira que a multipolaridade seja estabelecida, ela já está posta. O mundo unipolar caiu e vemos o despertar de uma nova ordem.

“Aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça”

BIBLIOGRAFIA

BRZEZINSKI, Zbigniew. The Grand Chessboard: American Primacy and Its Geostrategic Imperatives. United States of America: Basic Books, 1997.

DUGIN, Alexandr. Geopolítica da Rússia Contemporânea. Lisboa: Instituto de Altos Estudos em Geopolítica e Estudos Auxiliares, 2016; Kindle edition.

IKENBERRY, G.John. The Illusion of Geopolitics: The Enduring Power of the Liberal Order. United States: Foreign Affairs, 2014. https://www.foreignaffairs.com/articles/china/2014-04-17/illusion-geopolitics

LEVADA ANALYTICAL CENTER. Russian Public Opinion 2013-2015. Moscou: 2016, 365p.http://www.levada.ru/cp/wp-content/uploads/2016/01/2013-2015-Eng1.pdf.

MITCHELL, Wess. U.S. Strategy Towards the Russian Federation. Washington D.C: Senate Foreign Relations Committee, 2018. https://www.foreign.senate.gov/imo/media/doc/082118_Mitchell_Testimony.pdf.

RUSSIA. National Security Concept of The Russian Federation. The Ministry of Foreign Affairs of the Russian Federation. http://www.mid.ru/en/foreign_policy/official_documents/-
/asset_publisher/CptICkB6BZ29/content/id/589768

TISDALL, Simon (2012). Can the BRICS create a new world order? The Guardian. https://www.theguardian.com/commentisfree/2012/mar/29/brics-newworld-order.

UNITED STATES OF AMERICA. National Security Strategy of The United States of America. Washington D.C: 2017. https://www.whitehouse.gov/wp-content/uploads/2017/12/NSS-Final-12-18-2017-0905.pdf

WOHLFORTH, William C. The Stability of a Unipolar World. United States: International Security, Vol. 24, No. 1 (Summer 1999), pp. 5–41.

* Valdir da Silva Bezerra é Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estatal de São Petersburgo (Rússia). Membro do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP em Tópicos Relacionados à Ásia (NUPRI-GEASIA) e Pesquisador do Centro de Estudos sobre os BRICS da Universidade de São Paulo (GEBRICS).

** Fonte imagem: Concerto em homenagem aos 70 anos da Grande Vitória
Fonte: Wikimedia Commons (Public Access). URL: https://bit.ly/3Ox9Uqh

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